segunda-feira, 7 de junho de 2021

ASSUNTO É POLÊMICO . Criar novos municípios é prejudicial ao país?

 O BRASIL, TEM UMA MÁ DISTRIBUIÇÃO DE RENDA E POUCO FISCALIZADA, MAIS CRIAR MAIS MUNICÍPIOS É PREJUÍZO PARA OS COFRES PÚBLICOS?

VEJA O QUE ACONTECEU EM 2013



Criar novos municípios é prejudicial ao país?


No dia 12 de novembro de 2013 a Presidente Dilma vetou integralmente o Projeto de Lei Complementar nº 98, de 2002 (PLC 98/2002) recentemente aprovado no Congresso, que “Dispõe sobre o procedimento para a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, nos termos do § 4o do art. 18 da Constituição Federal“. No seu veto a Presidente alega que a aprovação da lei estimularia a criação de muitos municípios, resultando em aumento da despesa pública e em pulverização de recursos, o que prejudicaria os municípios já existentes.

Frente a essa situação, cabe perguntar: criar novos municípios é, per si, algo negativo para o desenvolvimento econômico? Em contrapartida ao aumento do gasto administrativo não haveria o surgimento de vantagens, como a maior liberdade administrativa para que alguns distritos que tenham crescido muito no passado recente estabeleçam suas próprias administrações e impulsionem ainda mais o desenvolvimento local?

Ademais, o país precisa ter uma regra clara não só para a criação, mas também para a fusão, o desmembramento e a incorporação de municípios. Afinal, não se pode impedir que, em função de mudanças econômicas e demográficas, novas cidades surjam ou outras sejam fundidas ou anexadas.  Se tudo ficar como está, também poderá haver desperdício de dinheiro se continuar a existir municípios em áreas que perderam importância econômica e que poderiam deixar de ter governo próprio, sendo incorporados ou fundidos a outros municípios.

Cabe, então, perguntar: em que condições vale a pena criar um município?

O princípio básico da organização federativa é o de que, na administração pública, o processo decisório deve ser o mais descentralizado possível. Tudo que puder ser administrado pelo município deve ser atribuído a essa esfera de governo, pois o gestor municipal está mais próximo da população e pode melhor captar suas necessidades, bem como pode adaptar a gestão às condições e restrições locais. Trata-se, pois, de um argumento relativo à eficiência na provisão de serviços públicos.

Uma precondição básica para que essa eficiência realmente seja alcançada é que haja escala suficiente para a prestação de serviços públicos, para que o custo fixo de construção e manutenção das estruturas requeridas não seja elevado em relação ao custo total e aos benefícios gerados. Por exemplo: se a comunidade tiver população muito pequena ela terá alto custo fixo para construção e manutenção de uma escola, que acabará atendendo poucos alunos; o posto de saúde atenderá poucas pessoas; os gastos para construção da prefeitura e para o pagamento do salário de vereadores será o mesmo de um município maior. Logo, é fundamental que os novos municípios tenham populações grandes, pelo menos superiores a 25 mil habitantes.

Outro requisito para eficiência é que o governo municipal efetivamente arrecade impostos dos cidadãos locais em montante significativo. Arcando com parcela elevada dos custos dos serviços prestados pela prefeitura, os eleitores tenderão a ser mais vigilantes e avaliarão os custos e benefícios dos projetos desenvolvidos pelo governo municipal. A autonomia política deve ter como precondição a autonomia financeira.

Assim, a tendência natural é que um distrito ou parte de um município busque a emancipação, formando um novo município, quando sua população tiver crescido o suficiente para justificar uma administração autônoma. Além disso, tal crescimento precisa ter gerado capacidade de arrecadação local de impostos.

O processo de desenvolvimento econômico naturalmente gera casos de distritos que crescem aceleradamente e passam a ser mais dinâmicos e mais populosos que a sede do município. Com isso, o desenvolvimento do distrito mais dinâmico pode ser tolhido pela sua subordinação administrativa. Nesse caso, a emancipação é plenamente justificada. De modo simétrico, municípios que entram em processo de estagnação econômica e perdem população poderão vir a ser absorvidos por jurisdições vizinhas que tiveram melhor desempenho econômico e demográfico.

Naturalmente a divisão administrativa dos estados vai, ao longo do tempo, se adaptando às mudanças da geografia econômica do País. Em suma, a criação de municípios será economicamente saudável, portanto, se duas precondições estiverem presentes:

1) os municípios devem financiar parte substancial de suas despesas com receitas arrecadadas diretamente dos habitantes locais;

2) o tamanho da população municipal deve ser grande o suficiente para garantir uma escala mínima para a oferta de serviços públicos com eficiência.

O problema, no caso brasileiro, é que essas precondições não são cumpridas. Vejamos cada um desses pontos separadamente.

a) A baixa tributação local

A Constituição de 1988 elevou substancialmente as transferências financeiras que a União e os estados devem fazer, obrigatoriamente, aos municípios. Isso fez com que muitos municípios se acomodassem e relaxassem no esforço de arrecadar tributos de seus próprios habitantes. Afinal, cobrar impostos é algo sempre impopular. Para todo prefeito, é melhor sustentar as despesas locais com “dinheiro que vem de fora” do que avançar sobre o bolso do seu eleitor. De acordo com dados do Tesouro Nacional, em 2012, 87% da receita corrente dos municípios brasileiros advinha de transferências, com apenas 13% sendo arrecadados por meio de tributos locais. No caso dos municípios com até 15 mil habitantes, a importância das transferências cresce para 91%. Ou seja, quase nada é arrecadado localmente.

Outro dado relevante para ilustrar o alto grau de insustentabilidade financeira dos municípios brasileiros: nada menos que 30% dos municípios atualmente existentes não arrecadam receita tributária suficiente para cobrir apenas os custos de suas Câmaras de Vereadores1.

Quando os contribuintes locais não têm que pagar diretamente os custos da administração municipal, reduz-se a resistência à criação de novos municípios. Prevalece a idéia de que com uma nova administração municipal, seja ela necessária ou não, mais dinheiro do resto do país fluirá para aquela localidade.

Antes da promulgação da Constituição de 1988 não havia grande interesse em emancipação, pois os municípios recebiam poucas transferências federais e estaduais. O orçamento de um novo município certamente seria minguado, a menos que se aumentasse a tributação local. De fato, foram poucas as criações de novos municípios durante o Regime Militar. Apenas 150 novos municípios entre 1970 e 19852. Após à Constituição a situação se inverteu: entre 1985 e 2000, foram criados 1.405 novos municípios3. Com se verá a seguir, a maioria deles pequenos, com menos de 10 mil habitantes.

b) Municípios pequenos e sem escala para ofertar serviços públicos

Não só foram criados muitos municípios após à promulgação da nova Constituição, como também a maioria deles é bastante pequena, tendo menos de dez mil habitantes. Assim, o Brasil descumpre também a precondição de que as novas unidades administrativas tenham escala suficiente para oferecer serviços de forma eficiente.

A preferência pela criação de municípios pequenos vem do fato de que as transferências federais e estaduais têm regras que favorecem mais os municípios pequenos.

Uma importante transferência recebida pelos municípios é o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Ele é responsável por nada menos que 44% de toda receita corrente dos municípios com menos de 10 mil habitantes4. Ocorre que o FPM tem regras de partilha que beneficiam sobremaneira as unidades com menos de dez mil habitantes. A título de exemplo, a soma das transferências de FPM recebidas por três municípios de 5 mil habitantes é 50% maior que o montante recebido por um município de quinze mil.

A conclusão óbvia é que há um incentivo à multiplicação de municípios: não só se aumenta o montante de transferências recebidas quando os municípios se dividem, como também são multiplicados os cargos políticos (e empregos públicos) a serem ocupados.

Devido ao descumprimento das condições analisadas nos itens (a) e (b), acima, houve um forte movimento de emancipação de municípios. Estes eram criados não pela necessidade administrativa de dar autonomia a distritos que cresceram e se tornaram econômica e financeiramente autônomos. Qualquer vila em que os moradores conseguissem se organizar e preencher os requisitos exigidos pela legislação estadual poderia requerer a emancipação. Uma vez bem sucedida, essa vila, elevada a município, passava a receber polpudas transferências federais e estaduais.

Os volumes transferidos são tão altos, que dispensam a necessidade de se arrecadar impostos locais. O novo município pode prover diversos cargos e empregos públicos, que aumentam a renda dos cidadãos locais, sem que os mesmos tenham que custear isso por meio de impostos.

A lógica de criação de municípios foi subvertida: em vez de se buscar a autonomia de um distrito que cresceu, em termos econômicos e populacionais, busca-se a autonomia dos pequenos e estagnados pois, proporcionalmente, quanto menos populosos, maior a vantagem financeira.

O processo natural de redesenho administrativo, em função do desenvolvimento econômico, foi substituído por uma disputa por verbas, cargos e empregos públicos, que desestimula o desenvolvimento econômico. Por um lado, para os habitantes de municípios pequenos, tornou-se mais fácil viver de uma renda pública do que investir em um negócio ou buscar um emprego privado. Por outro lado, os municípios grandes perdem verbas (que são realocadas para os novos municípios) e deixam de ser capazes de enfrentar complexos problemas sociais que entravam o desenvolvimento econômico e social, como os congestionamentos de trânsito, a violência urbana, a proliferação de habitações em áreas de risco.

Há uma clara desproporção entre os recursos recebidos e as necessidades das populações locais quando se comparam municípios pequenos com os grandes aglomerados urbanos.

As novas administrações municipais, em vez de se instalarem em lugares prósperos, como suporte ao desenvolvimento econômico já em curso na localidade; vão se instalar em locais estagnados, de baixa produtividade e sem maiores perspectivas econômicas.

O desenvolvimento econômico, em uma economia capitalista, se dá por meio do crescimento do setor privado, e não do governo. Mais dinheiro público em lugares sem condições para o desenvolvimento do setor privado não fará a mágica de despertar o empreendedorismo ou de criar novas atividades econômicas rentáveis. Pelo contrário, aumentará a dependência da população local em relação ao dinheiro e ao emprego público.

Dado que o Fundo de Participação dos Municípios é repartido entre municípios de todo o País, os estados que criassem mais municípios conseguiriam tirar recursos de outros estados que fossem mais lentos no processo de redivisão administrativa. Para estancar essa disputa, a Lei Complementar nº 62, de 1989, tornou fixa a participação total de cada estado no FPM. Assim, a criação de um novo município implicaria perdas fiscais apenas para os municípios do mesmo estado, o que reduzia o incentivo do governo estadual para estimular o recorte administrativo.

Adicionalmente, para estancar o processo desordenado de repartição municipal, que tem efeito deletério sobre as finanças e a qualidade da gestão pública, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 15, de 2006 (EC 15/96), que alterou o § 4º do art. 18, para determinar que uma lei complementar deveria estipular os critérios exigidos para a criação, incorporação, fusão ou desmembramento de municípios.

A lógica da EC 15/96 era de que, tendo em vista ser politicamente muito difícil alterar as regras de partilha das transferências federais e estaduais aos municípios, e, portanto, reduzir os incentivos à criação de municípios ineficientes, a solução seria a criação de critérios mínimos mais rígidos que exigissem, por exemplo, um elevado tamanho mínimo de população como pré-requisito à emancipação5.

Contudo, o Congresso passou vários anos sem aprovar a lei federal exigida pela EC 15/96. Tal situação tornou-se confortável para o Poder Executivo federal, que, durante os anos 90, em especial a partir de 1999, lutava para conseguir equilibrar as contas fiscais. Assim, na primeira década do novo século, o Presidente da República vetou dois projetos de lei aprovados pelo Congresso para regulamentar a EC 15/966. Provavelmente a intenção do Executivo Federal era manter congelada a possibilidade de se criar mais municípios pequenos e economicamente inviáveis.

Se, por um lado, essa situação de vácuo legal impedia a expansão predatória de municípios, por outro bloqueava a legitima emancipação de distritos que vinham experimentando desenvolvimento econômico. O país não podia permanecer com seu recorte administrativo congelado indefinidamente. Foi por isso que o Congresso aprovou o PLS 98/2002, que acabou tendo o mesmo destino das tentativas anteriores: o veto presidencial.

A razão básica do veto (e para o argumento de que haveria a criação de um grande número de municípios) parece ser o fato de que o PLS 98/2002 fixa populações mínimas muito baixas para os novos municípios. Isso permitirá a permanência da lógica atual de se criar municípios pequenos, sem escala e em áreas sem grande perspectiva econômica. Segundo o texto aprovado, esses limites são:

  • Regiões Norte e Centro-Oeste: 5.997 habitantes;
  • Região Nordeste: 8.396 habitantes;
  • Regiões Sul e Sudeste: 11.995 habitantes.

Os limites fixados para o Norte, Nordeste e Centro-Oeste são inferiores a dez mil habitantes. Ocorre que municípios menores que 10.188 habitantes são justamente os mais beneficiados pelos atuais critérios de partilha do FPM. Portanto, permanecerá o grande incentivo à criação de municípios com finalidade puramente de absorção de transferências federais e estaduais.

Até mesmo no caso dos municípios do Sul e Sudeste permanece  tal incentivo: a divisão de um município de 24 mil habitantes em dois de 12 mil habitantes (acima, portanto, do limite mínimo de 11.995 habitantes) promoverá um ganho de 14% nas transferências recebidas em conjunto pelos dois novos entes federativos, de acordo com as regras vigentes do FPM.

É verdade que o PLS 98/2002 faz diversas exigências que deveriam, em tese, evitar a criação de municípios de baixa capacidade fiscal. Há, por exemplo, a necessidade de aprovação de um Estudo de Viabilidade Municipal, onde se analisariam diversas dimensões, desde a viabilidade fiscal até questões ambientais. Todavia, dado que o estudo seria encomendado por aqueles que teriam por objetivo a emancipação, não é difícil imaginar que o rigor da análise seria afetado pelo objetivo de conseguir a emancipação.

O ideal seria reformar a legislação do FPM, retirando o seu viés a favor dos pequenos municípios. Isso reduziria bastante o incentivo à criação de novas jurisdições. Mas seria muito difícil encontrar um consenso político que viabilizasse tal solução. Frente a tal situação, o que parece ser mais viável é uma lei complementar de criação de municípios que estabeleça um limite populacional mínimo mais elevado. Se novos municípios só pudessem ser criados com população superior a 25 mil habitantes, ficaria afastado tanto o problema do incentivo ao recebimento de mais transferências, quanto o problema da baixa escala de produção dos serviços públicos.

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