terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Historicamente. A cultura acrescenta valor à vida das pessoas




José Álvaro Moisés


A cultura acrescenta valor à vida das pessoas. Entretanto, historicamente, governos e Estados tardaram a reconhecer suas dimensões fundamentais na transformação do sentido das atividades cotidianas. No Brasil, por exemplo, as áreas da saúde e educação tiveram ministérios criados muito antes da criação controversa do Ministério da Cultura, em 1985. Nesta entrevista, o cientista político e economista José Álvaro Moisés, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), analisa os modelos de investimento em cultura nos setores púbicos e privados, os percalços da Lei Rouanet como ela é hoje e discorre, ainda, sobre as dificuldades da inexistência de uma estrutura sólida e adequada para apoiar a cultura brasileira em toda sua complexidade.



Boletim da Democratização Cultural - Qual a importância da cultura para o desenvolvimento socioeconômico dos países?



José Álvaro Moisés - A cultura e as artes são dimensões fundamentais da vida humana. Por meio delas, as pessoas atribuem significação simbólica à sua experiência cotidiana, definindo e transformando o sentido de atividades como a luta pela sobrevivência e o trabalho. A cultura faz isso porque acrescenta valor à vida das pessoas, seja do ponto de vista material, ao torná-las mais qualificadas e mais valiosas em seu ambiente profissional, seja do ponto de vista ético e moral, ao estimular o seu refinamento espiritual e estético e ao melhorar a sua auto-estima. Exemplo disso é a fruição da beleza possibilitada pela obra de arte. A beleza transforma a qualidade de vida das pessoas ao torná-las mais sensíveis e, dessa forma, melhores como seres humanos. Por causa disso, a cultura também é um componente fundamental do desenvolvimento ao reivindicar a humanização do crescimento econômico.


B.D.C. – O senhor trabalhou no Ministério da Cultura, no governo de Fernando Henrique Cardoso, por oito anos. O que pode dizer sobre como o Estado entende a importância da cultura e como dispõem seus investimentos em prol desta área?



J.A.M. – Mesmo quando existe empenho de governos democráticos em reconhecer o potencial transformador da cultura, isso não significa necessariamente que o Estado reconhece-a como uma prioridade de sua ação permanente. Estado e governos não são a mesma coisa e, no Brasil, a cultura ainda não é uma prioridade do Estado, embora seja, cada vez mais, preocupação de diferentes governos. Essa distinção analítica entre Estado e governo ajuda a entender porque, entre nós, a educação e a saúde, independentemente da orientação de governos específicos, são prioridades do Estado brasileiro, isto é, são objetivos permanentes capazes de mobilizar políticos de quase todos os partidos, a burocracia estatal da União, Estados e municípios, e parte significativa da sociedade civil organizada. Antes mesmo da Constituição Brasileira fixar percentuais mínimos do orçamento federal a serem aplicados em educação e saúde, essas áreas já tinham se tornado prioridade da ação do Estado, algo iniciado em 1934, quando foi criado o Ministério da Educação e da Saúde, mais tarde desdobrado em dois órgãos diferentes.


B.D.C. – Há muitas críticas hoje em dia no que diz respeito à aplicação da Lei Rouanet. O senhor concorda com elas?



J.A.M. – O problema é que a vitalidade da cultura brasileira demanda muito mais do que tudo o que vem sendo feito. Os recursos são insuficientes para atender 85% dos projetos apresentados ao Ministério da Cultura por artistas e produtores culturais; somente 15 a 20% deles são contemplados, deixando muitos que querem se expressar por meio da cultura sem poder fazê-lo. Os recursos federais para a cultura cresceram cerca de cinco vezes no governo FHC mas, mesmo assim, nos últimos dez anos, aí incluídos os 18 primeiros meses do governo Lula, a participação do setor no conjunto do orçamento da União nunca ultrapassou 0,5% do total; dos recursos de incentivos fiscais concedidos pelo Estado a diferentes setores da economia – entre os quais, a Zona Franca de Manaus, as lojas de free-shop e a indústria automobilística –, somente 0,7% do total cabe à cultura, algo quase insignificante.


B.D.C. – Há uma dimensão que, habitualmente, não aparece nas avaliações sobre a cultura: o seu impacto social e econômico. Qual a proporção deste impacto para a geração de renda e de emprego no País?



J.A.M. – Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, entre 1997 e 1998, cada 1 milhão de reais investidos em cultura gera 160 postos diretos ou indiretos de trabalho no País. Pelos dados daqueles anos, isso representava mais de duas vezes o que setores como a indústria automobilística ou o setor de elétricos e eletrônicos empregava, pela simples razão que, não sendo capital intensive, mas um setor que utiliza extensivamente a mão de obra, a cultura envolve muita gente em suas atividades. E considerados apenas os setores incluídos nas contas oficiais, e excluídas as atividades culturais informais, o País empregava mais de meio milhão de pessoas em atividades culturais na ocasião e, em 2000, esse total já chegava a 700 mil pessoas; a cultura correspondia a 1% do PIB, evidenciando a sua capacidade de gerar riqueza. Ou seja, a cultura movimentava cerca de R$ 8 bilhões ao ano, por força principalmente das indústrias culturais, mas os investimentos públicos eram de menos de 15% desse total.


B.D.C. – Não há um contra-senso dos governos por, apesar desse potencial, a cultura não ser ainda uma prioridade do Estado?



J.A.M. – Sim. Não se justifica que a cultura não seja uma prioridade, independentemente do partido que esteja no poder. Em meus anos no Ministério da Cultura, constatei que, ao primeiro sinal de crise financeira, quase sempre foram os recursos para cultura os primeiros cortados ou contingenciados, como também acontece agora. A síndrome não depende de quem está no poder, mas é um padrão de comportamento de setores da burocracia do Estado, especialmente da área econômica, quase sempre a que mais resiste a reconhecer que, para além de sua capacidade de transformar a vida das pessoas, a cultura gera riqueza e empregos. Mesmo quando a criação de empregos é uma prioridade de governos democráticos, a cultura é insuficientemente reconhecida por sua contribuição neste setor.


B.D.C. – Com relação aos gastos públicos com cultura, o investimento brasileiro é muito dissonante do de outros países da América, como por exemplo os Estados Unidos?



J.A.M. – A estabilidade das leis culturais é fundamental, como ensina a experiência internacional. A legislação de incentivo fiscal à cultura existente nos Estados Unidos, que canaliza a participação de empresas e de doadores individuais no financiamento da cultura, alcançou, no fim dos anos 90, cerca de US$ 10 bilhões anuais, soma superior ao que o Estado investe diretamente em cultura. Lá, a primeira tentativa de introduzir legislação semelhante é de 1914, mas a lei em vigor se consolidou a partir de 1917, garantindo a participação das corporações e dos indivíduos no financiamento à cultura por meio da aplicação de patamares bastante generosos de impostos não pagos. O extraordinário é que, por quase 70 anos, ela permaneceu intocada, ou seja, entre 1917 e 1986, não sofreu nenhuma modificação capaz de desestimular a participação da sociedade. Isso não impediu que aperfeiçoamentos pontuais fossem feitos depois de 1986 mas, no essencial, a lei se manteve estável durante dois terços do século passado, permitindo que ela apoiasse o desenvolvimento da cultura.


B.D.C. – Em sua opinião, como devem funcionar as leis de incentivo para formar reais investidores e patrocinadores privados?



J.A.M. - Uma lição que aprendi nos meus tempos de trabalho no MinC refere-se à importância da estabilidade de leis e normas para atrair a participação da sociedade, especialmente do setor privado, em apoio à cultura. Poucos duvidam hoje que o sucesso das políticas culturais democráticas depende em grande medida da parceria entre o Estado e o setor privado, seja por causa das dificuldades do poder público para financiar sozinho a cultura, seja também porque, apesar da globalização, ao invés de diminuir, a atuação do Estado aumentou em muitas áreas e, nessas circunstâncias, cabe à parceria público-privado viabilizar políticas públicas definidas como prioritárias.


B.D.C. - O senhor acredita que a indústria cultural e os meios de comunicação de massa, como a televisão, são instrumentos que, de uma forma ou de outra, concentram parte dos investimentos que poderiam ser gastos em atividades culturais de maior poder de transformação, como cinema, música erudita, acesso a museus, etc.?



J.A.M. - Não temos de demonizar as indústrias culturais, como fizeram alguns, para reconhecer o seu papel. Mas como acontece na economia de mercado, o acesso aos bens comercializados por elas depende da capacidade de consumo do público. No Brasil, onde a televisão está presente em mais de 90% dos domicílios, uma pesquisa realizada pelo IPEA, no final dos anos 90, mostrou que 10% do consumo das famílias era com gastos com cultura e o maior percentual disso ia para produtos como a televisão e, em medida menor, para o cinema. A literatura, a música erudita ou instrumental, para não falar do acesso a museus e às artes plásticas, era quase inexistente. Além de evidenciar os déficits de consumo de bens culturais no País, isso aponta para o potencial econômico do audiovisual. Mas também aponta para os limites do acesso que os brasileiros têm à enorme diversidade cultural do País pois, por mais que a televisão se esforce, ela não consegue dar conta da necessária difusão cultural que a riqueza, a complexidade e a diversidade regional da cultura brasileira exigem.

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