terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O pecado da honestidade


Por Abdon Marinho
NESTE início de ano disseminou-se, principalmente, por meio das redes sociais, mas também por outras mídias, uma espécie de corrente no qual o mote principal era o fato do presidente norte-americano, Barack Obama, encerrar seus oito anos de mandato sem qualquer escândalo, fosse no campo pessoal, fosse no campo político.
A proeza, destacada até por grandes veículos de comunicação, estendia-se aos familiares e também aos seus auxiliares.
Não resta dúvida que o feito foi extraordinário. Um governo concluir oito anos de poder sem pontificar escândalos é, de fato, uma bênção, mas, como podemos ver, perfeitamente possível, tanto que Obama conseguiu.
O que me causa espécie é ver a sociedade (não só a brasileira) tratar uma coisa que deveria ser normal, rotineira em quaisquer governos, como algo extraordinário, capaz de causar estupefação:
– Olha eles são honestos!
– Honestos?!
– Meu Deus, existe pessoas honestas!
Pois é, esta foi a reação de boa parte da comunidade mundial ao fato dos Obama, não terem pontificado escândalos. Mas o que dizer num mundo em que aquilo que deveria ser a regra tornou-se exceção?
Esta semana mesmo o governo da Romênia teve a brilhante ideia de “anistiar” a corrupção até determinado valor, só voltando atrás na patuscada após amplas manifestações populares contrárias a tal corrupção censitária.

No Brasil há quem aposte e defenda proposta neste sentido. Só que, por aqui, defende-se anistiar o crime, vez que os desvios não encontram paralelo no mundo inteiro, a ideia é estabelecer que políticos ou partidos que receberam recursos do chamado caixa 2, independente da origem do dinheiro – seja da velha conhecida corrupção ou de outras fontes igualmente espúrias –, não sejam alcançados pela lei.
Recentemente condenado o casal de marqueteiros das campanhas presidenciais de Lula e Dilma e inúmeros outros políticos no Brasil e no mundo, assentaram de forma cândida que a cultura das campanhas políticas era de se fazer os pagamentos “por fora”, no caixa 2, em contas no estrangeiro.
Não duvido disso. Ainda hoje, com o limite de gastos estabelecido para as campanhas, muitos políticos gastam infinitamente além daquele valor, muito embora na prestação de contas nada disso apareça.
O juiz não se convenceu que o aspecto cultural de uma prática criminosa os inventassem de pagar por ela e os condenou a uma pena de oito anos.
Mas a realidade é que vivemos em um mundo de condutas invertidas, onde a honestidade causa estupor e os crimes são tidos como aspectos culturais.
Outro dia um amigo, engenheiro dos mais competentes e que fazia tempo que via, apareceu pelo escritório.
Perguntei-lhe a razão do desaparecimento. Explicou-me que estava trabalhando em determinado órgão, mas que naquele dia entregara o cargo.
Curioso indaguei a razão de ter saído ao que respondeu-me:
– A razão da minha saída foi o fato de ter impedido a sangria dos cofres públicos em mais de 800 mil no intervalo de apenas oito meses.

Isso só nos processos que me permitiram fiscalizar. Se tivessem permitido a fiscalização nos demais processos a economia aos cofres públicos seriam de bem mais de 2 milhões de reais, neste período.
Completou:
– Segundo fui informado estava “atrapalhando”.
A realidade do Brasil é esta: as pessoas honestas “atrapalham”, por isso mesmo não chegam muito longe. São demitidas, difamadas, humilhadas. Ao contrário daqueles que são capazes de tudo para atender aos mais inconfessáveis interesses. Esses vão longe e se trouxerem no gene o DNA da adulação atingem os píncaros do sucesso.
Certa vez – já faz muito tempo –, um cliente reclamou da minha insistência na obediência a lei:
– Abdon quer que eu faça tudo certo. Se for para fazer tudo certo não precisarei de advogado.
Este, tempo depois veio a agradecer por nunca tê-lo deixado fazer o que lhe vinha à cabeça.
Mas a cultura da bandalha parece ter ganhado mais adeptos do que se imaginava a ponto de determinados órgãos reclamarem da contratação de advogados sob o argumento de que há pouco ou quase nada a ser feito.

Não passa pela cabeça de tais gênios que a ausência de demanda ocorre justamente pelo fato de que houve um bom trabalho de assessoria/consultoria a impedir os equívocos ou erros, ou mesmo a deliberada vontade de se fazer as coisas de qualquer jeito.
Não faz muito aconteceu algo bem semelhante.
Um amigo com quem trabalhei noutras empreitada recomendava nosso escritório a determinado cliente:
– Acho que seria muito bom se pudéssemos contratar o Dr. Abdon, já trabalhei com ele e me sinto muito mais seguro contarmos com a sua assessoria.
O cliente, um amigo de mais de vinte anos virou-se para ele e respondeu:
– Também gosto muito do trabalho do Dr. Abdon, meu amigo de muito tempo. Mas tem um problema, ele é muito “certinho”.
O amigo que nunca perde a viagem não se deu por vencido:
– Mas, doutor, nos tempos atuais, talvez seja hora de contarmos com alguém que nos oriente a fazer o certo e não nos deixe errar.

São tempos estranhos estes em que vivemos quando a honestidade, o zelo pela coisa pública passou a ser um “defeito”, passou a atrapalhar. Atrapalhar o que? Que esse ou aquele faça conluio para saquear o dinheiro que deveria virar escolas, postos de saúde ou obras de infraestrutura?
O tempo passa, governos mudam, mas a prática, infelizmente, é quase sempre a mesma, com os os interesses políticos e pessoais sendo colocados à frente do interesse público.
Dizia Rui Barbosa que chegaria o dia em que o cidadão de bem teria vergonha de se dizer honesto. Para o desespero dos bons, esse dia já chegou.
Abdon Marinho é advogado.

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