Por Oscar Vilhena Vieira
Folha.com
A erosão da autoridade
O massacre de Manaus e agora o de Boa Vista não constituem um mero acidente. Decorrem de décadas de negligência das autoridades brasileiras com o crescimento do crime organizado e com a degradação de seu sistema prisional.
O Brasil ocupa o lugar de quarto país com a maior população carcerária do mundo. Entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionamento aumentou 119%, ultrapassando a marca de 622 mil pessoas privadas de liberdade, sendo que 41% delas correspondem a prisões provisórias.
Essa política indiscriminada de encarceramento, além de ineficaz como mecanismo de dissuasão do crime, tem contribuído de forma significativa para o agravamento da criminalidade. Nas últimas duas décadas foram cerca de 1 milhão de homicídios. Conforme dados do Fórum Nacional de Segurança Pública, apenas em 2015, 58.492 pessoas foram vítimas de homicídio; 54% das vítimas eram jovens e 73%, negros e pardos. Para citar apenas mais um dado desta tragédia, estima-se que 45.460 mulheres foram vítimas de estupros no último ano. O perfil da população prisional é o mesmo das vítimas de violência letal: 56% são jovens de 18 a 29 anos e 67%, negros.
A superlotação carcerária, as sádicas condições de aprisionamento, a falta de acesso à defesa e a bens de higiene e saúde básicos, além do arbítrio e a violência dos agentes do Estado, criaram um ambiente propício à expansão do crime organizado dentro e fora do sistema prisional. Esse sistema pariu o PCC, o Comando Vermelho, Terceiro Comando e, no Amazonas, como aprendemos, a Família do Norte. Estima-se que mais de 70% das penitenciárias brasileiras estejam dominadas por facções criminosas. O sistema prisional transformou-se numa enorme parceria público-privada, onde o Estado é sócio minoritário. Sua frágil estabilidade, rompida esta semana, está baseada num espúrio conluio entre o crime e autoridades.
Ao chegar ao cárcere, os jovens que ainda não se encontravam comprometidos com o crime organizado se veem obrigados a se vincularem às facções, como medida de sobrevivência. Após serem colocados em liberdade, a fatura é cobrada. Dificilmente surge outra alternativa, senão voltar ao crime, ainda mais violentos.
O Brasil precisa adotar uma política criminal e de segurança pública pautadas num profundo compromisso com a legalidade, na modernização de suas polícias, no emprego intensivo da inteligência, na racionalização do uso da prisão e numa verdadeira supervisão judicial do sistema. Atenção especial deve ser dada à revisão da política de drogas, dado que seu irracional enfrentamento apenas amplia a corrupção, os homicídios, os roubos e o tráfico de armas.
No plano emergencial, conforme representação que está sendo apresentada ao Conselho Nacional de Justiça por um conjunto de organizações de direitos humanos, é necessário tomar medidas para assegurar a integridade dos que que se encontram sob a custódia do Estado, responsabilizar os envolvidos na barbárie, rever a situação de milhares de presos provisórios e neutralizar a influência do crime organizado sobre sistema carcerário.
Em 2017, além de tirar a economia e a política da mediocridade onde se meteram, o grande desafio será interromper o forte processo de erosão da autoridade do Estado brasileiro.
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