Infância e juventude
João Calvino (Jean Cauvin), nasceu em Noyon, nordeste da França, em 10 de julho de 1509. Seus pais, católicos praticantes, desde cedo instruíram os dois filhos, Charles e Jean, nos princípios da fé que professavam. Pelo fato de seu pai, Gérard Cauvin, manter ligações estreitas com o bispo da cidade, Calvino usufruiu de privilégios que lhe propiciaram uma excelente educação. Sua mãe, Jeanne Lefranc, oriunda de uma nobre família francesa, faleceu quando ele tinha 6 anos. Durante a infância, ele conviveu e estudou com os filhos das famílias locais. Sua inteligência e dedicação aos estudos lhe oportunizaram, já na adolescência, mudar-se para Paris, em 1523, onde estudou latim e humanidades. Em 1528, iniciou seus estudos na área jurídica em Orleans e depois em Bourges, onde também estudou grego. Nessa época, ele solidarizou-se com a causa da Reforma, pois simpatizava com as posições antipapistas.
Sua educação e interesses bem pontuais logo demonstraram que Calvino era adepto do humanismo, um significativo movimento intelectual da época da Renascença. Isso é compreensível, já que Calvino amava a cultura greco-romana, as artes, a literatura e a filosofia clássicas. Muito desse ideal permearia, posteriormente, sua postura política e teológica, visto que Calvino não almejava meramente um novo sistema eclesiástico, mas, sim, a transformação da sociedade.
Durante seu período de estudos, seu pai ficou seriamente doente e Calvino voltou para casa a fim de cuidar dele. Depois do falecimento de seu pai, em 1531, Calvino retornou a Paris e dedicou-se ao que mais gostava — a literatura clássica.
No ano seguinte, em 1532, Calvino publicou um artigo em que abordava a obra do antigo filósofo romano Sêneca, De Clementia (Sobre a clemência), solicitando ao rei Francisco I que usasse de clemência para com os reformadores, pois a Igreja francesa rechaçava severamente quaisquer inovações no tocante à religião.
Não muito tempo depois disso, Calvino, influenciado por pessoas bem próximas, converteu-se à fé evangélica por volta de 1533, aderindo formalmente ao protestantismo. Com isso passou de uma postura cristã nominal à espiritualidade bíblica e cristocêntrica.
Assim, como todo protestante do século 16, Calvino sofreu certa influência do luteranismo, especialmente no que tange à justificação pela graça mediante a fé em Cristo. Com isso, começou a combater as práticas e ensinos do catolicismo, o que lhe trouxe a perseguição da Inquisição.
Diante disso, no final de 1534, ele fugiu para Angoulême, onde hospedou-se na casa de um amigo. Lá passou a estudar profunda e sistematicamente a Bíblia dando início a sua principal obra teológica: as Institutas. O resultado de sua dedicação foi a publicação, em 1536, da primeira edição em latim das Institutas da Religião Cristã ou, como é mais popularmente conhecida, as Institutas de Calvino. Esse tratado não só revelou seus dotes literários e seu profundo conhecimento bíblico, como também trouxe à tona uma nova teologia bem distinta da de Lutero. Com as Institutas pensava em padronizar os princípios do protestantismo.
As Institutas, composta por quatro partes, aborda os seguintes temas: o ser e as obras de Deus; Jesus Cristo e a obra da redenção; instruções sobre a vida cristã e a igreja e sua relação com a sociedade e o Estado. Enfatizam a soberania das Escrituras e a predestinação divina — doutrina que defende que Deus elege aqueles que herdarão a vida eterna com base em Sua onipotência e graça. Assim, além de ser detentora de um valor teológico inestimável, as Institutas de Calvino representam também um marco intelectual e literário à História da Igreja.
Alguns meses mais tarde, Calvino se dispôs a ir para Estrasburgo, na Alemanha, mas, por causa de um inconveniente, precisou pernoitar em Genebra. Lá encontrou-se com Guilherme Farel, líder protestante que começara a Reforma ali. Este convenceu Calvino a ficar em Genebra e ajudá-lo com essa causa.
Em seu primeiro ano em Genebra, como se importava com a educação, Calvino propôs ao conselho municipal a criação de uma escola obrigatória para todas as crianças, inclusive meninas, e na qual as crianças pobres estudariam gratuitamente.
Calvino tinha uma meta muito clara a esse respeito: que cada aluno fosse de fato um cidadão e fosse versado “na linguagem e nas humanidades”, além de receberem formação cristã e bíblica. O currículo, que ele ajudou a elaborar, enfatizava as artes e as ciências, bem como as Escrituras.
Calvino permaneceu em Genebra durante dois anos tentando, junto a Farel, implementar a Reforma, mas, devido a divergências com autoridades civis da cidade relacionadas a questões eclesiásticas expostas em alguns de seus escritos — Artigos sobre o governo local” e “Confissões de fé” —, foi expulso da cidade.
Com isso, em 1538, Calvino foi para Estrasburgo, onde residiu por três anos (1538- 41) junto ao reformador Martin Bucer. Lá, pastoreou uma modesta igreja de exilados franceses, lecionou em uma escola que serviu de base para a futura Academia de Genebra e participou de conferências que tinham como meta aproximar protestantes e católicos. Também produziu vários textos: uma edição inteiramente revisada das Institutas (1539), fez a primeira tradução dela para o francês (1541), elaborou um comentário da Epístola aos Romanos, a Resposta a Sadoleto (uma apologia da fé reformada), dentre outras obras. Também em Estrasburgo, em 1540, Calvino casou-se com a viúva Idelette de Bure, membro de sua igreja.
Durante esse tempo, amadureceu e tornou-se um impressionante teólogo e pastor.
A igreja será sempre liberta das calamidades que lhe sobrevêm, porque Deus, que é poderoso para salvá-la, jamais suprime dela Sua graça e Sua bênção.
—João Calvino
Mudança definitiva para Genebra
Nesse ínterim, em 1541, Calvino foi convidado a retornar a Genebra, pois alguns de seus amigos tinham assumido o governo da cidade. Mesmo relutando, alguns meses depois, Calvino deixou a Alemanha e voltou a Genebra no dia 13 de setembro de 1541 e foi nomeado pastor da antiga catedral de Saint Pierre. Em seguida, escreveu uma constituição para a igreja reformada de Genebra (as Ordenanças Eclesiásticas), uma nova liturgia e um novo catecismo, que foram logo aprovados pelas autoridades civis. Nesse documento, Calvino prescreveu quatro ofícios para a igreja: pastores, mestres, presbíteros e diáconos.
Calvino empenhou-se intensamente para tornar Genebra uma cidade cristã. Por 14 anos (1541- 55) digladiou-se com autoridades e algumas famílias influentes, às quais denominou de “libertinos”. Nesse período, em 1549, sofreu uma grande perda: a morte de sua esposa dedicada e leal, que o acompanhara por dez anos. Calvino não se casou novamente. Nessa ocasião, também se deparou com alguns oponentes teológicos, dentre eles o médico espanhol Miguel Serveto, que negava a doutrina da Trindade. Serveto refugiou-se em Genebra após fugir da Inquisição, contudo devido a essa divergência teológica, em 1553, ele foi considerado herege e sentenciado à morte na fogueira. A omissão de Calvino em intervir a fim de impedir tal execução, ainda que compreensível à luz das circunstâncias da época, é uma triste mancha na biografia desse grande reformador.
Em Genebra, onde viveu o restante de seus dias, Calvino tornou-se um importante líder espiritual e político. Ele usou os princípios protestantes para estabelecer um governo religioso e, em 1555, recebeu poder ilimitado como líder da cidade. Os “libertinos” foram finalmente derrotados e conselhos municipais foram estabelecidos por homens que o apoiavam.
Calvino influenciou sobremaneira a sociedade genebrina, não apenas no aspecto moral e religioso, mas em diversas áreas. Ele contribuiu para que as leis da cidade se tornassem mais humanas, colaborou com a criação de um sistema educacional acessível aos cidadãos e incentivou a filantropia, cooperando para a organização de um hospital para carentes e um fundo de assistência aos estrangeiros pobres.
Ele instituiu muitas políticas positivas e também puniu a “impiedade”. Nos primeiros cinco anos de sua gestão em Genebra, 58 pessoas foram executadas e 76 exiladas por suas crenças religiosas. Calvino não permitia outra arte além da música, porém sem instrumentos. Sob sua liderança, Genebra se tornou o centro do protestantismo e enviou pastores por toda Europa, que inspiraram o presbiterianismo na Escócia, o movimento puritano na Inglaterra e a igreja reformada na Holanda.
Em 1559, três importantes fatos aconteceram na vida de Calvino: ele tornou-se oficialmente um cidadão genebrino, a Academia de Genebra foi inaugurada — destinada primordialmente à preparação de pastores reformados— e publicou a última edição das Institutas.
Ao longo de seus anos ministeriais, embora com saúde debilitada, Calvino foi incansável em suas atribuições como pastor, pregador, administrador, professor e escritor. Enquanto Lutero trouxe paixão e populismo ao movimento religioso que promovera, Calvino, como um proeminente teólogo protestante, ficou conhecido pela abordagem intelectual e racional da fé ao fornecer os fundamentos teológicos do protestantismo.
A mente do homem é como um depósito de idolatria e superstição, de modo que, se o homem confiar em sua própria mente, é certo que ele abandonará a Deus e inventará um ídolo, segundo sua própria razão. —João Calvino
Academia de Genebra
A Academia de Genebra foi a escola de grandes reformadores de toda a Europa, tornando Genebra o principal centro protestante de todo continente nos primórdios da Reforma.
Calvino acreditava que todo conhecimento, fosse ele “sagrado” ou “profano”, provinha de Deus. Sua cosmovisão de mundo, em muito influenciada pelo humanismo, levava-o a crer que Deus é Senhor de todas as coisas, inclusive que toda verdade é verdade de Deus. Com essa crença, ele fundamentou o conceito da “Graça Comum” ou “Graça Geral” de Deus sobre todos os seres humanos.
Defendia que Deus agraciara todas as pessoas com inteligência, perspicácia, capacidade de entender e transmitir, independentemente de sua fé e crença. Assim, desconsiderar a mente secular era desprezar as dádivas que Deus concedeu ao mundo, até mesmo aos incrédulos, mediante a graça comum. Diante disso, não é de se estranhar que o coração de Calvino pulsava por uma educação que fosse acessível à população de um modo geral.
Calvino desejava criar uma universidade, mas os recursos da União eram insuficientes para tal empreendimento. Assim, ele se limitou a instituir a Academia de Genebra (1559). De acordo com o currículo da instituição, os alunos seriam alfabetizados e depois passariam à leitura do francês fluente, gramática latina e composição em latim, literatura grega, leitura de porções do Novo Testamento grego, juntamente com noções de retórica e dialética, com base nos textos clássicos.
Na mente desse Reformador, jamais existiu o conflito entre fé e ciência. Ao contrário da visão educacional escolástica medieval, Calvino considerava que o estudo da ciência física visava descobrir a natureza e sua dinâmica, pois Deus se revela à humanidade mediante Sua criação. Assim, ao estudar o mundo, o ser humano acabaria conhecendo Deus.
A Reforma e a Educação
Calvino, como outros reformadores, defendeu que a educação estivesse ao alcance de todos os cidadãos. Assim, os cristãos reformados se dedicaram a promover a educação, as artes e as ciências. Eles nunca consideraram a fé cristã como inimiga do avanço científico e do saber humano.
Por isso, as ciências físicas e as biológicas foram influenciadas fortemente pelos calvinistas durante os séculos 16 e 17. Pesquisadores e cientistas, por sua vez, foram influenciados pela Reforma Protestante, especialmente pelo trabalho de João Calvino.
Nos séculos subsequentes, a educação foi profundamente influenciada por outros reformadores, principalmente os de princípios calvinistas. Nessa área, destaca-se a obra de João Amós Comênio, Didática Magna, considerada o primeiro tratado sistemático de pedagogia, de didática e de sociologia escolar.
Muitas das maiores e melhores universidades em diversos países europeus foram fundadas por reformados. Também, algumas das principais dos Estados Unidos, como as de Harvard, Yale e Princeton. No Brasil, os reformados trouxeram importantes contribuições para a educação, com a fundação de escolas e universidades e a influência nos meios educacionais.
“Tendo sido um espectador de sua conduta por 16 anos, posso declarar que todos os homens podem considerá-lo um modelo muito bonito de caráter cristão, um exemplo que é tão fácil de difamar quanto difícil de imitar.” —Theodore Beza, falando sobre Calvino
Morte e legado
João Calvino faleceu em 27 de maio de 1564 prestes a completar 55 anos em Genebra, Suíça. A seu pedido, foi sepultado em local desconhecido, pois queria evitar que possíveis homenagens póstumas à sua pessoa ocorressem e isso obscurecesse a glória de Deus. Ele foi muito modesto e jamais pretendeu ser considerado uma celebridade por conta de suas realizações.
Poucas são as personalidades na História da Igreja que estabeleceram um impacto tão profundo e duradouro quanto João Calvino. A partir da leitura dos profetas e dos evangelhos, Calvino também deixou contribuições nas áreas social e econômica, acentuando valores como a solidariedade, a compaixão e a justiça social. Inquestionavelmente o sistema calvinista foi responsável por boa parte da prosperidade econômica de Genebra.
No âmbito religioso, Calvino é considerado o pai da tradição protestante reformada, que engloba presbiterianos, congregacionalistas, parte dos batistas e parte do anglicanismo. Ele deixou muitas obras publicadas e seguidores do sistema que mais tarde foi chamado de calvinismo, em todo mundo. Na Europa Ocidental foram chamados de huguenotes (França), presbiterianos (Escócia), puritanos (Inglaterra) e protestantes (Holanda). Do século 16 até a contemporaneidade, o cristianismo de orientação calvinista tem se espalhado por toda a Terra.
No campo das missões, Calvino acolheu e treinou indivíduos que implantaram igrejas reformadas nas mais diferentes regiões da Europa. Em 1557, o reformador de Genebra foi responsável pelo envio de um pequeno contingente de huguenotes à Baía de Guanabara, onde o militar Nicolas Durand de Villegaignon havia estabelecido uma colônia, a França Antártica. Esse grupo realizou o primeiro culto protestante da história das Américas, empreendeu a primeira tentativa protestante de evangelizar os indígenas brasileiros e produziu um documento de singular beleza e profundidade — a Confissão de Fé da Guanabara. Dessa maneira, Calvino foi o único reformador protestante a ter uma conexão pessoal com o Brasil.
O seu famoso mote: “O meu coração te ofereço, ó Senhor, de modo pronto e sincero”, com a imagem de uma das mãos segurando um coração e a inscrição das palavras em latim Cor meum tibi offero Domine, prompte et sincere, aparecem em todas as obras de Calvino como símbolo de seu serviço e propósito de vida.
“Confesso que vivo e morro nesta fé que Deus me concedeu, visto que não tenho outra esperança ou refúgio além de Sua predestinação, sobre a qual se fundamenta toda a minha salvação.” —João Calvino”
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