A raiz de um povo...
[...] devemos distinguir, no folclore das Américas Negras, três camadas superpostas, que seria perigoso confundir. Primeiro por um folclore africano conservado fielmente, segundo, um folclore negro, chamado de crioulo, e por fim um folclore branco, evangelizador das massas.
No Brasil, as danças de origem negra foram durante muito tempo consideradas profanas e portadoras de traços demoníacos e no Maranhão, uma dessas danças, o bumba-meu-boi retém traços africanos, crioulo e português que durante algum tempo foi excluída do contato com as elites dominantes.
Houve um tempo na história do Maranhão em que as brincadeiras de bumba-meu-boi eram casos de polícia, proibidos no circuito urbano da cidade de São Luís através de portarias proibitivas, esta brincadeira ou folguedo, só poderia acontecer no perímetro “sub-urbano” ou seja a partir do bairro do João Paulo, daí a tradição do São Marçal que existe até hoje no bairro do João Paulo.
Antes, circunscrita aos limites do bairro do João Paulo, por força do preconceito das elites, o Bumba-meu-boi chegou a ser proibido embora hoje seja uma das maiores e mais puras expressões culturais deste estado a exemplos do bumba-meu-boi de Zabumba, cultivados nos bairros da nossa ilha. Matracas e Pandeirões reinando, no interior da Ilha. Orquestra na região do Munim. Sotaque de Pindaré, na Baixada, sem falar nas muitas outras variedades, misturando tradição com modernidade.
A história da resistência do Bumba-Meu-Boi no Maranhão é testemunha do idealismo e da determinação de muitos que se foram, sem que tenham tido a redenção em relação ao preconceito das elites, assim como de muitos outros, que ainda estão por aqui, preservando essa tradição arraigada do Bumba-meu-boi do Maranhão.
As transformações econômicas, políticas e culturais do século XX, principalmente as da segunda metade, romperam com os critérios europocêntricos que ainda eram dominantes e com as estruturações históricas uniformes e hierarquizadas, muitas vezes preconceituosas, levando o Bumba-meu-boi a se transformar em cultura elitizada e presente nos salões palacianos e grãnfinas passarelas.
Contrastando com os limites geográficos impostos ao Bumba-meu-boi no passado, hoje vemos com orgulho e satisfação jovens com rostos alegres, portes atléticos empunhando matracas, ornamentados com chapéus, participando das brincadeiras juninas. Os Bumba-meu-boi já não brincam somente no bairro do João Paulo, vão ao Renascença, Calhau e muitos outros bairros elitizados, bairros nobres, sendo recebidos com respeito, alegria e até ufania. É a cultura impondo-se ao preconceito.
O tempo é tanto o elemento de articulação da narrativa historiográfica, como é vivência civilizacional e pessoal. Para cada civilização e cultura, há uma noção de tempo, cíclico ou linear, presentificado ou projetado para o futuro, estático ou dinâmico, lento ou acelerado, forma de apreensão do real e do relacionamento do indivíduo com o conjunto de seus semelhantes, ponto de partida para a compreensão da relação Homem – Natureza – Sociedade.
Para o Maranhão há o tempo do Carnaval e o tempo dos Bumbas-meu-boi, onde a relação do homem com a natureza e a sociedade se transforma, possibilitando a sobrevivência das heranças ancestrais, rastro do passado transformado em resistência.
Da noção de tempo civilizacional derivaram filosofias, teorias, historiografias, com seus calendários, cronologias, periodizações por momentos, seleções de fatos marcantes – elementos mutáveis a cada leitura, a cada narrativa historiográfica, sempre datada, quer a de nacionais quer a de estrangeiros.
Os espaços da cidade, os grupos culturais, antes proibidos e reprimidos pelos órgãos oficiais, ganharam vozes e visibilidade a partir dos quintais, das rodas de rua e com sua musicalidade conquistaram amizades, derrubaram fronteiras, estabeleceram vínculos e traçaram caminhos, onde o ser do tambor, do boi, do terreiro não é uma escolha pessoal, é uma cultura que transforma o corpo em instrumento de expressão.
Gonçalves Dias, em seu célebre canto Terra das Palmeiras, nos diz que “As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. Os cantadores de boi, no Maranhão, não são cantores comuns, são encantadores de gentes, são pássaros (Guriatãs e Sabiás) que aqui gorjeiam diferentes dos demais no mundo inteiro, com poderes sobrenaturais de comandar. Arregimentando corpos e corações com a responsabilidade de preservar a história e a cultura maranhense.
Para Reis, mudam os tempos, mudam os costumes, mudam os homens, foi o que aconteceu com o ciclo junino maranhense, discriminado há tempos idos, como coisa de negros, índios ou similares, hoje apadrinhados pelos ocupantes do poder econômico e político maranhense. Qualquer que seja a temporalidade escolhida pelo historiador, ela passa a integrar o objeto de estudo desde a seleção do tema, na escolha das fontes – escritas, iconográficas, marcos de periodização, datas iniciais e finais do estudo, recortes temporais, que devem guardar coerência interna, e não elementos de explicação causal.
O Bumba-meu-boi representa uma geografia sonora da ilha e seu calendário anual é hoje reconhecido como patrimônio cultural do Brasil, seus toques se espalharam criando circuitos de celebração, invadindo ruas, avenidas, praças impondo a sua lógica a rotina das pessoas e dos ambientes, a cidade se transforma ao som das matracas, dos pandeirões e dos maracás, senhores absolutos das mídias durante os meses de junho e julho, os bois expressam sua vitalidade cultural no tempo que a cidade aprendeu a respeitá-los.
Fonte. Cultura do Maranhão
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