A proposta, que limita os gastos do governo, foi aprovada em uma primeira votação na Câmara dos Deputados. Se passar, vai mudar as regras para financiamento da Saúde no Brasil. Entenda o que isso significa
A Câmara dos Deputados aprovou em primeira votação, na noite da última segunda-feira (10), a Proposta de Emenda Constitucional 41 – ou a PEC do teto de gastos. Tida como prioritária pelo governo dopresidente Michel Temer, a medida estabelece um limite para os gastos da União – que serão congelados em níveis de 2016 e corrigidos, ano a ano, de acordo com a variação da inflação. A PEC precisa passar por, pelo menos, mais três votações no Congresso. Mesmo assim, o resultado da última segunda-feira foi interpretado como uma vitória importante para o governo, que defende a PEC como essencial para a retomada do crescimento econômico.
Se passar, a nova regra deverá valer por 10 anos, podendo ser prorrogada por mais 10. Isso não impede também que, nesse meio tempo, outra PEC seja feita e mude as regras novamente. Na Câmara, a 241 passou com vantagem – somou 366 votos favoráveis, 58 a mais do que o necessário para ser aprovada. Os embates mais acalorados giraram em torno das mudanças na regra de financiamento para saúde e educação. São pontos sensíveis porque, nas projeções dos críticos à medida, existe o risco de o nível de investimento em saúde cair a longo prazo – resultado potencialmente trágico para uma área já subfinanciada. O governo sustenta que o risco não existe: segundo representantes da área econômica de Temer,a saúde será tratada como área prioritária. Embora a PEC estabeleça um limite total de gastos, ela não fixa limites para áreas específicas. Se achar necessário, e se tiver recursos, o governo poderá destinar mais verba para áreas consideradas essenciais. O debate em torno da questão é especialmente importante em tempos de crise: com desemprego em alta, mais pessoas passam a depender do SUS para tratar problemas de saúde. Haverá recursos para cuidar de todas essas pessoas?
Como é hoje?
O financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é de responsabilidade das três esferas de governo: da União, dos estados e dos municípios. Hoje, quem determina quanto a União vai destinar à saúde é a Emenda Constitucional 86. Em vigor desde o começo de 2016, ela estabelece que o dinheiro destinado pelo governo federal à saúde é calculado com base em uma porcentagem das receitas correntes líquidas. Funciona assim: o governo federal arrecada impostos e contribuições. A Constituição estabelece que parte dessa arrecadação deve ser transferida para Estados e municípios. O que resta é a Receita Líquida (RCL). A EC 86 estabelece que, entre 2016 e 2020, parcela crescente da RCL deverá ser destinada a saúde: 13,2% em 2016 e 13,7% em 2017 - até chegar a 15% em 2020.
Estados e municípios também devem destinar uma parcela de suas receitas para o financiamento do SUS – os estados contribuem com, no mínimo, 12%; os municípios, com 15%. As regras para essas esferas de governo foram estabelecidas pela Emenda Constitucional 29, em vigor desde 2000. Esses valores, válidos para a União e para as demais esferas, são valores mínimos. Se os governos julgarem necessário – e se tiverem recursos – podem destinar mais dinheiro para financiar o sistema. A regra estabelece o piso.
Há dinheiro o suficiente, hoje, para financiar a saúde?
O Brasil conta com um sistema de saúde público e universal. Isso significa que todo cidadão pode usar o SUS para tratar ou prevenir doenças. Significa, também, que o SUS é responsável por cuidar da saúde da população de maneira global: a saúde pública cuida das atividades de vigilância sanitária e epidemiológica, por exemplo. Serviços que nos beneficiam a todos - mesmo àqueles entre nós que contam com convênios médicos privados. Quando comparado a outros sistemas universais, no entanto, o brasileiro recebe pouco investimento. Em 2014, segundo os dados mais recentes daOrganização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$ 947,40para custear a saúde de cada cidadão durante o ano todo. É pouco quando comparado aos US$3.934 que os britânicos destinaram ao setor no mesmo período. No caso brasileiro, há um agravante:menos da metade do investimento – 46% – foi financiado pela esfera pública. Os outros 54% correspondem a gasto privado. O investimento público do Brasil em saúde é baixo mesmo quando comparado a outros países da América Latina: em 2014, o gasto público em saúde no Brasil correspondeu a 3,8% do PIB. No mesmo ano, a Colômbia destinou 5,4% do PIB para a saúde. “Se você quer garantir da vacina ao transplante, não tem como gastar tão pouco”, diz Arthur Chioro, professor da Universidade Federal de São Paulo, e ex-ministro da saúde do governo Dilma.
Especialistas em financiamento da saúde apontam que parte da explicação para esse investimento baixo está no orçamento apertado destinado pelo governo Federal para o setor. A estrutura tributária brasileira foi planejada de modo que a União retenha a maior parte dos impostos, tributos e contribuições: “A constituição brasileira é extremamente descentralizadora nas atribuições. Mas, ao longo do tempo, houve uma recentralização das receitas”, diz a professora Ligia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Significa que é a União quem possui mais recursos para investir. Proporcionalmente, investe pouco. Segundo estimativas do professor Áquila Mendes, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, a União foi responsável por 43% dos investimentos públicos em saúde feitos nos Brasil em 2014. Os municípios, que arrecadam menos impostos, contribuíram com 31%.
O que muda com a PEC 241?
A proposta do governo muda como é calculado o investimento federal mínimo em saúde. A regra vigente diz que, em 2017, o governo deveria destinar à saúde 13,7% de suas receitas líquidas. A PEC 241 muda essa lógica: em 2017, a saúde receberá, no mínimo, 15% desse total. A partir do ano seguinte – e pelo menos até 2026, talvez até 2036 - o valor vai variar de acordo com a inflação. A aplicação mínima em 2018 será a mesma feita em 2017, acrescida da inflação registrada no período. Se julgar necessário, e se tiver recursos, o governo terá margem para aumentar o orçamento da Saúde - desde que não ultrapasse o teto geral de gastos.
A PEC significará menos dinheiro para a saúde?
O governo sustenta que a mudança de regra garantirá maiores investimentos para o setor. “No caso da saúde, a notícia é ainda melhor”, diz Mansueto Almeida, secretário de Acompanhamento Econômico do governo, em um vídeo divulgado pelo Planalto para promover a medida. “O governo,com a PEC 241, vai aumentar recursos para a saúde”. É uma meia verdade. Em 2017, o investimento mínimo será realmente maior do que aquele originalmente pretendido: ao aplicar 15% da RCL, e não os 13,7% planejados pela regra que hoje vigora, o governo garantirá cerca de R$10 bilhões a mais para a saúde – R$113,7 bilhões contra R$103,9 bi. Os críticos da medida veem dois problemas nessa retórica: o valor originalmente planejado para 2017 era baixo. Em 2014 e 2015, o governo destinou cerca de 15% das receitas líquidas à saúde. A aplicação regrediu em 2016 - para 13,2%. E continuaria baixa no ano seguinte, se fossem mantidas as regras atuais. Em 2017, mesmo com a aplicação de 15% prevista pela PEC, a verba destinada à saúde será inferior àquela aplicada em 2014. Por causa da crise econômica, a arrecadação do governo caiu. Aplicar 15% da receita em 2017 não é o mesmo que aplicar 15% das receitas em 2014. “Para manter o padrão de investimentos de 2014, o governo deveria destinar cerca de R$119 bi para a saúde em 2017”, afirma Francisco Funcia, economista e consultor técnico do Conselho Nacional da Saúde. E não os R$113,7 bilhões que serão aplicados caso a PEC seja aprovada.
Há também temores quanto aos efeitos da PEC a partir de 2018, caso a receita governamental aumente (se o país voltar a crescer). Como o investimento em saúde não estará vinculado a essas receitas, há o risco de ele não crescer no mesmo ritmo. O Conselho Nacional de Saúde calcula que, se a regra hoje existente for mantida, serão aplicados R$137,7 bilhões em saúde, no mínimo, em 2020. Pelas regras da PEC 241, a aplicação mínima será de R$130,5. Num cenário de crescimento sustentável do país, e caso o sistema seja mantido por 20 anos, as perdas se acumularão: R$ 433,52 bilhões a menos, na projeção do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Ou R$ 743 bi, nas previsões do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Corrigir o valor mínimo pela inflação será insuficiente para garantir o nível de investimento adequado, também por outro motivo: “A inflação médica é superior à inflação comum”, diz Arthur Chioro. Outro problema é o crescimento da população, conjugado ao envelhecimento. "Somos um país que está envellhecendo, mas que ainda cresce. Com a redução dos recursos, aumentará o subfinanciamento da saúde", afirma Gustavo Andrey Fernandes, pesquisador do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo.
Há também temores quanto aos efeitos da PEC a partir de 2018, caso a receita governamental aumente (se o país voltar a crescer). Como o investimento em saúde não estará vinculado a essas receitas, há o risco de ele não crescer no mesmo ritmo. O Conselho Nacional de Saúde calcula que, se a regra hoje existente for mantida, serão aplicados R$137,7 bilhões em saúde, no mínimo, em 2020. Pelas regras da PEC 241, a aplicação mínima será de R$130,5. Num cenário de crescimento sustentável do país, e caso o sistema seja mantido por 20 anos, as perdas se acumularão: R$ 433,52 bilhões a menos, na projeção do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Ou R$ 743 bi, nas previsões do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). Corrigir o valor mínimo pela inflação será insuficiente para garantir o nível de investimento adequado, também por outro motivo: “A inflação médica é superior à inflação comum”, diz Arthur Chioro. Outro problema é o crescimento da população, conjugado ao envelhecimento. "Somos um país que está envellhecendo, mas que ainda cresce. Com a redução dos recursos, aumentará o subfinanciamento da saúde", afirma Gustavo Andrey Fernandes, pesquisador do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo.
Essas projeções pessimistas são criticadas porque é difícil prever como a receita vai se comportar pelo próximos 20 anos. “Alguém sempre critica os parâmetros utilizados”, diz Funcia. O estudo publicado pelo Ipea foi criticado pela própria direção do Instituto: em nota, o presidente do Ipea, Ernesto Lozardo, disse que os autores desconsideraram os efeitos positivos da PEC que, ao reorganizar a economia, pode melhorar a arrecadação de Estados e Municípios – e garantir maior investimento em saúde por parte dessas esferas de governo. Além de fazer projeções, o Ipea também tentou avaliar quais seriam os efeitos do teto de gastos se ele existisse entre 2003 e 2015 – um cenário verificável. “Se a PEC estivesse em vigor no passado, em 2015 o governo teria aplicado R$70 bilhões em saúde - e não os R$100 bilhões que aplicou”, diz Funcia. O orçamento seria 30% menor.
Ainda que a PEC seja aprovada, o governo poderá destinar mais dinheiro à saúde do que o piso estabelecido por lei. Mas não é essa a tradição brasileira.Um levantamento feito pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde mostra que, entre 2000 e 2015, a União fez aplicações em saúde acima do mínimo legal somente em três ocasiões: 2013, 2014 e 2015. Se, após a aprovação da PEC, o governo mantiver essa tradição, haverá grandes chances de faltar dinheiro.
Se faltar dinheiro, o que acontece?
Cerca de ⅔ do orçamento federal para a saúde é composto por transferências destinadas a estados e municípios. Menos recurso federal significa maior exigência sobre essas outras esferas de governo, que também estão em situação financeira frágil. Por lei, os municípios brasileiros deveriam destinar, no mínimo, 15% de suas receitas para a saúde. Em média, as cidades aplicam 24%. Se aumentarem esse valor, correrão o risco de comprometer os orçamentos municipais. "A PEC vai obrigar uma discussão que não podemos adiar mais: que SUS queremos? Se quisermos um SUS com o nível de serviço de hoje ou melhor, teremos que concordar com um imposto como a CPMF, que pode ser provisório, vinculado à duração da PEC", diz Paulo Furquim, coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper.
Com orçamentos apertados, os municípios brasileiros terão de escolher entre tratar doentes ou investir na prevenção de enfermidades, função da chamada atenção básica. É um dilema que a maioria deles já enfrenta. E a tradição brasileira dá precedência ao tratamento: “As secretarias de saúde não têm saída. Elas têm de atender primeiro os casos graves e os casos urgentes”, diz Nelson Rodrigues dos Santos, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas. “Eles vivem esse drama porque sabem que, quanto menos resolverem os problemas da atenção básica, mais casos graves e urgentes surgirão”.
E se a PEC não for aprovada?
Os defensores da PEC atestam que ela ajudará a pôr nos trilhos as contas públicas - algo importante para que o país volte a crescer. Num cenário em que a PEC não é aprovada - e se não forem encontradas alternativas para retomar o crescimento econômico- as finanças públicas vão continuar a se deteriorar: “Sem a PEC, com o agravamento da crise econômica, haveria perda de recursos de qualquer maneira, mas desorganizadamente. A PEC organiza essa limitação de recursos", afirma Maria Dolores Montoya Diaz, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.
Em qualquer dos cenários, com ou sem a aprovação da PEC 241, evitar que se escolha entre tratar e prevenir exigirá que os parlamentares, responsáveis pela elaboração do orçamento, tomem decisões difíceis mas necessárias – escolham tirar recursos de certas setores, para priorizar o investimento em áreas essenciais, como saúde e educação - sabendo que contam com recursos limitados: seja por força da lei ou das circunstâncias. E vai exigir que os cidadãos, que os elegeram, trabalhem como fiscais capazes de dizer quais as necessidades prioritárias para o país.
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