quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Entenda alguns contra pontos da Reforma Política para eleições de 2018

O que podemos esperar das eleições de 2018 com a reforma política de 2017?

Novamente o Congresso Nacional está a todo vapor trabalhando na reforma política. Nem bem as alterações legislativas realizadas em 2015 foram aplicadas nas últimas eleições de 2016, já se está diante de um novo sistema. Discute-se o projeto de emenda constitucional 77-A que visa à adoção de um sistema predominantemente público de financiamento de campanhas, a partir do Fundo Especial para o Financiamento da Democracia (FFD), paralelamente ao sistema distrital misto de votação nas eleições para Deputado Federal, Estadual, Distrital e Vereador nos Municípios com mais de duzentos mil eleitores. Como regra de transição, surge o “distritão”, sistema majoritário aplicado sobre a base de estados ou municípios como distritos únicos.[1]
Eis as principais propostas da PEC, a qual versa sobre muitas outras alterações, já que traz, realmente, um novo sistema.
Do Fundo Especial de Financiamento da Democracia (FFD)

O modelo proposto para o financiamento das eleições é misto, a partir da criação do FFD para o custeio das atividades eleitorais, constituído por quatro fontes de recursos: i) dotações orçamentárias na proporção de 0,5% do total da receita corrente líquida auferida no período de doze meses, encerrado em junho do exercício anterior às eleições; ii) doações e contribuições autorizadas por lei – supondo que são privadas de pessoas físicas; iii) rendimentos oriundos desses valores; bem como outras fontes e origens admitidas em lei. A proposta é uma resposta à escassez de recursos para campanhas após a proibição de doações de pessoas jurídicas (ADI 4.650) e o valor do FFD, se estivesse em vigor, alcançaria aproximadamente 3,6 bilhões de reais.[2]

Critérios de acesso e de distribuição desses recursos entre partidos e candidatos estão reservados ao projeto de lei da reforma. Contudo, a própria CEPOLITI já propôs a sistemática: i) O valor total (antes de R$ 1.9 bilhão) para as campanhas para Senador da República, Deputado Federal, Estadual e Distrital, bem como para o 1° turno para Governo dos Estados e Presidência; ii) R$ 285 milhões para o 2° turno para Governo dos Estados e Presidência. Para a distribuição destes valores, há duas etapas: i) definição do valor global correspondente a todas as campanhas; ii) logo para cada partido. Considerando o total para todas as campanhas; haverá a divisão de 70% para cargos do Executivo, com 40% para presidente e 60% para governador; e os restantes 30% para o Legislativo (listas preordenadas). Já para a distribuição dos recursos entre os partidos, são: i) 2% em partes iguais entre todos os partidos registrados no TSE; (ii) 98% divididos entre os partidos, na proporção do percentual de votos obtido na última eleição geral para a Câmara dos Deputados (montante menor que a proporção aplicada ao fundo partidário, de 5% para todos e 95% proporcional aos votos obtidos).
Com tal estrutura, é possível deduzir que todo o sistema se converterá em praticamente público, pois é a principal fonte de recursos.
Os critérios de acesso mostram-se desproporcionais, alcançando somente as forças parlamentares e excluindo, desde logo, grande parte dos entes partidários. O mesmo ocorre na distribuição dos valores, petrificando ostatus quo. Os grêmios majoritários já contam com a visibilidade de sua presença no Estado e já possuem uma forte estrutura partidária: colocá-los em uma posição hegemônica não parece uma boa alternativa diante do princípio da igualdade e do princípio democrático, muito menos quando é uma solução proposta para a atual crise política.
Nesse sentido, já se observa em alguns sistemas o fenômeno dos “partidos cartel”, que ocorre frequentemente em modelos com forte inclinação para o financiamento público.[3] Os partidos beneficiados pelos critérios de acesso e distribuição dos recursos públicos podem dificultar a entrada de novos beneficiários, realinhando-se para não prestar contas dos recursos, celebrando acordos para mútua proteção. Os partidos beneficiários se retroalimentam dos recursos públicos, podendo, até mesmo, revezarem-se no poder sem, contudo, provocar a alternabilidade.[4]
Há, também, o outro lado: a cooptação pelo Estado das organizações partidárias. Os partidos brasileiros têm natureza jurídica de direito privado, o que compromete, do ponto de vista jurídico, um modelo de financiamento público. Os partidos não são órgãos do Estado, mas intermediários na relação sociedade-Estado. Com um sistema fundado em receitas públicas, poder-se-ia fazer com que os partidos fossem incorporados ao Estado, como meros componentes do conjunto estatal, alterando as funções que lhes foram atribuídas pela Constituição.
Esta preocupação é vista em outros países como o espanhol[5] e estadunidense,[6] bem como na União Europeia.[7] Estando o financiamento sob o crivo do Estado, há o risco de seleção de forças políticas que “sobreviverão” no espectro político, o que, indubitavelmente, não colabora para o saneamento da democracia brasileira.
Cabe ressaltar que não há propostas de medidas de controle de recursos no financiamento, seja na PEC, seja nos relatórios referentes aos projetos de lei ordinária já apresentados pela Comissão Especial, algo que se julga vital.
Do sistema majoritário e distrital de votação

Tanto no modelo “distritão” quanto no distrital misto não há um cálculo proporcional dos votos para o preenchimento dos cargos. O candidato ou a lista de candidatos mais votada vencerá, desprezando-se os votos não dados à opção eleita, impactando na sensação de representatividade dos eleitores.

Com isso, não há possibilidades de participação no governo quando há uma votação que elege a maioria, condição essa que vale para os eleitores e para os partidos não eleitos. Ainda que se fale de maiorias relativas, os apoios políticos costurados para a sua obtenção sempre favorecerão os partidos hegemônicos, tornando cada vez mais “homogênea” a composição política do país, com prejuízos para a oxigenação do sistema. Aqui, literalmente, the winner takes it all, engrossando os protestos, o ceticismo, abstencionismo e apatia.
Fale-se ainda sobre o superdimensionamento da representação. No limite hipotético, os sistemas majoritários permitem que o alcance de 50,1% dos votos corresponda à outorga de 100% dos cargos colocados em disputa em um determinado distrito eleitoral. Isso faz com que o Parlamento deixe de ter composição plural.
Some-se a isso a perda em termos de controle e transparência. Se por um lado a diminuição no número de partidos favorece a governabilidade e contorna os obstáculos ocasionados pela fragmentação, por outro diminui os atores vigilantes, fragilizando a fiscalização.
A votação majoritária está presente em qualquer dos sistemas de votação propostos pela PEC. Há a adoção do sistema distrital misto nas eleições da Câmara dos Deputados e Vereadores em municípios de mais de duzentos mil eleitores, a partir de 2022. Haveria, assim, dois votos por eleitor, um para o representante da Câmara (sistema majoritário) e outro para uma lista preordenada de candidatos, segundo a ordem estabelecida pelo partido e sem a possibilidade de modificação.
Como regra de transição (eleições de 2018 e 2020), surge o “distritão”, com votação majoritária para a Câmara dos Deputados e Vereadores, considerando como os estados ou municípios como distritos únicos.
Ao sistema distrital atribuem-se as seguintes vantagens: a formação de governos funcionais; o fortalecimento dos partidos; a diminuição dos custos de campanha; a aproximação entre eleitor e eleito, possibilitando um maior controle sobre a função parlamentar; uma maior identificação entre representante e representado, aportando questões locais à tomada de decisões em âmbito federal. No entanto, há desvantagens que podem frustrar as vantagens.
A primeira providência atrelada é a divisão do território em circunscrições eleitorais (distritos). Segundo a PEC, haverá 513 distritos uninominais para as 513 vagas de deputados federais, sendo os assentos atribuídos ao concorrente com o maior número de votos. A divisão tendenciosa do território dos distritos é conhecida como gerrymandering, termo que alude a uma manipulação no desenho das circunscrições eleitorais, com o objetivo de induzir um determinado resultado eleitoral. Isso traz também a constante necessidade de censos eleitorais para a atualização dos distritos, possibilitando que, a cada eleição, ele sofra modificações em sua dimensão, confundindo o eleitor. Junto a isso há o malapportionment, referente à desproporção entre o número de deputados e o tamanho da base eleitoral. Embora encontrado em sistemas proporcionais, a atribuição parlamentar não-equitativa tende a crescer com a aplicação de plataformas distritais, criando problemas que ultrapassam a base do eleitorado e impactam, negativamente, o equilíbrio do pacto federativo.
No Brasil, a distribuição dos distritos deverá ser feita dentro dos estados, levando-se em conta o número de assentos atribuídos a cada um (art. 45, CF). Haverá, sobretudo em áreas menos populosas e mais afastadas, amplas faixas com poucos distritos, impondo àquelas localidades um vácuo de representação.[8] Como consequência, surge o risco de uma preterição sistemática no que toca às políticas públicas em âmbito nacional.
O efeito excludente alcançará também os partidos médios, causando uma concentração de poder nos partidos majoritários, agravando o desequilíbrio do sistema político. Com esse forte filtro, a tendência é que restem somente as forças notadamente majoritárias.
Evidente também que o sistema misto é, para o eleitor médio, um método de difícil compreensão, não apenas pelas regras de cálculos e descartes, mas pelo problema da sobreposição de distritos, derivado da realização de eleições simultâneas para deputados federais e estaduais. Em função da diferença no número de vagas, as diversas unidades da Federação sofreriam um duplo recorte, de sorte que não haveria coincidência entre os distritos assinalados para cada espécie de eleição. Uma divisão para as eleições de deputado federal e outra para estadual.
Do sistema de votação em listas preordenadas
A PEC propõe, a partir de 2022, o sistema distrital misto com dois votos, sendo um na pessoa de um candidato e outro em uma lista preordenada (fechada) de partidos. As cadeiras serão preenchidas proporcionalmente ao número de votos em cada legenda.

A democracia interna dos partidos é um conhecido problema. Embora aumente a responsabilidade das agremiações a fim de apresentarem candidaturas “atraentes” ao eleitorado, na prática pouco ou nada se saberá sobre como as listas serão compostas, como a colocação da lista será definida. Este cenário não é ruim apenas ao eleitorado, mas também para os próprios candidatos, que dentro de um mesmo partido, terão que lidar com um ambiente altamente competitivo para ter alguma chance de boa colocação. Isso se agrava com o fato de que os candidatos nos distritos eleitorais ou a outros cargos majoritários poderão figurar simultaneamente nas listas partidárias preordenadas, havendo candidaturas “duplas”.
Em recente manifesto, a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político cuidou de enumerar os múltiplos aspectos negativos inerentes à fórmula de listas fechadas. São eles: a) a limitação imposta ao espectro de escolha do eleitor, em função da eliminação da possibilidade de emissão de voto pessoal; b) o intenso reforço de poder conferido aos altos dirigentes partidários, recrudescendo a prática espúria do denominado caciquismo, contrário à noção de democracia intestina; c) o prejuízo à oxigenação nas cúpulas dos partidos, em função do embaraço ao surgimento de novas lideranças; d) o sufocamento do questionamento interno, em agravo ao desenvolvimento de práticas corretivas e ao progresso oriundo do choque ideológico de opiniões; e) a restrição à liberdade para o exercício do mandato, virtual condutora da sobreposição de interesses partidários aos anseios legítimos da base popular; f) o potencial escamoteamento da representação territorial, uma vez que a decisão partidária pode deixar de assegurar a presença de candidatos de um ou mais núcleos geográficos da circunscrição eleitoral; g) o potencial agravamento da tendência de apresentação de candidatos puxadores de voto, possivelmente utilizados como estratégia para o arrastamento de políticos rejeitados ou menos populares, que os seguiriam na ordem da lista.[9]
Considerações finais

Nesse cenário, entende-se que são modificações muito profundas em um momento pouco adequado para tal, sem que se possa refletir sobre as consequências de alterações dessa envergadura. Pequenos ajustes tanto no financiamento de campanhas quanto no sistema proporcional de votação poderiam ter mais eficácia na melhora da crise política como um todo. Ressalte-se que grande parte dessas medidas já foram propostas pela Abradep, constando em sua publicação oficial.[10] Reforça-se, portanto, a pertinência e relevância da adoção das medidas a seguir sugeridas.

No que tange ao financiamento, julga-se que o modelo mais adequado é o misto já vigente. Nesse sentido, melhor é que se volte a autorizar, por via de emenda constitucional ou até mesmo lei ordinária, as doações de pessoas jurídicas, a partir de total transparência e com um teto nominal.[11] Essa providência resolverá três problemas: i) escassez de recursos para as campanhas; ii) escassez de recursos públicos em tempos de crise orçamentária; iii) falta de transparência e controle desses recursos privados.
Ainda no que se refere ao financiamento, a definição dos limites, tanto de doações como de gastos, a partir de valores numéricos se impõe. Aperfeiçoar os mecanismos de controle, tanto por parte do TSE como cidadão é também primordial. Quanto mais disposição para a transparência, maior a chance de saneamento do sistema. Um maior detalhamento dessas medidas se vê melhor inserido em lei ordinária, não em uma emenda constitucional.
Já no que se refere ao sistema eleitoral, sugere-se a manutenção do sistema proporcional atual, com quatro principais ajustes: i) a extinção de coligações proporcionais, a fim de resgatar a coerência programática dos partidos; ii) a inclusão dos partidos que não alcançaram o quociente eleitoral na distribuição de cadeiras de sobra, para que partidos pequenos possam aumentar suas chances eleitorais; iii) a alteração do método de distribuição das cadeiras de sobras, substituindo o método das maiores médias pelo das maiores sobras; iv) limitação do número de candidatos por partido ao número de cadeiras em disputa, a fim de racionalizar a formação das listas e de conter o custo das eleições, mantendo-se a cota de gênero vigente.
A reforma política deve vir como resposta para uma sociedade desacreditada na política, sem o ânimo de mera sobrevivência na política. Como está, a PEC vem de encontro com o texto constitucional, e isso é tudo o que não deve ocorrer nesse momento.

[1] Na versão original do relatório CEPOLITI, essa regra não constava. Foi incluída pela aprovação de um destaque de autoria do Dep. Celso Pansera (PMDB-RJ), que trouxe da emenda aditiva de autoria do Dep. Miro Teixeira, já apresentada durante os debates para a aprovação da EC 91/2016.
[2] Esse valor, frise-se, vem limitado pelo próprio texto da PEC, que traz na ADCT 116 a impossibilidade de aumento dos 0,5% da receita corrente líquida para além do montante a ser aplicado nas eleições de 2018, sendo a sua correção somente pela inflação. Esta regra reflete a expectativa de que, com o sistema distrital misto, os custos de campanha sejam paulatinamente reduzidos.
[3] KATZ, Richard S.; MAIR, Peter. Changing models of party organizations and party democracy: The emergence of the cartel party. Party Politics. London: Sage, v. 1, n. 1, p. 5-28, 1995.
[4] Sobre o tema, há farta literatura especializada. Cite-se, na doutrina nacional, SANTANO, Ana Claudia. O financiamento da política – Teoria Geral e Experiências no Direito Comparado. 2° ed., Curitiba: Íthala, 2016. p. 221 e ss.
[5] Lei Orgânica 3/2015.
[6] Bipartisan Campaign Reform Act, 2002.
[7] Regulation (EU, EURATOM) n° 1141/2014.
[8] No que tange à representação das distintas camadas sociais, registre-se que o voto distrital é ainda mais problemático do que o próprio “distritão”. A despeito de todos os seus defeitos, a maior amplitude da circunscrição no último caso serve para incrementar as chances de acomodação de minorias assentadas sobre bases territoriais dispersas, as quais têm o acesso a cargos obstado em disputas realizadas sobre bases geográficas diminutas.
[9] ALVIM, Frederico Franco; CAMPOS NETO, Raymundo. Parecer contrário à adoção do modelo de lista fechada. In: < http://www.abradep.org/publicacoes/parecer-contrario-adocao-do-modelo-de-lista-fechada/> Acesso em 14 ago. 2017.
[10] Cf. PEREIRA, Rodolfo Viana; ALENCAR, Gabriela Rollemberg (org.). Teses sobre a reforma política. ABRADEP, Brasília, 2016.
[11] Nesse sentido, cf. FRAZÃO, Carlos Eduardo. A PEC do financiamento empresarial de campanhas eleitorais no divã: a constitucionalidade material à luz da teoria dos diálogos institucionais. Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE. a. 7, n. 12, p. 57-69, jan./jun. 2015.
 é professora do programa de mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia, do Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca, Espanha.
Frederico Franco Alvim é professor de pós-graduação em Direito Eleitoral, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino, Especialista em Direito Eleitoral pela UFG e pela Universidad Nacional Autónoma de México. É membro fundador da Abradep
Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2017, 8h41

Se aprovado, "distritão" pode acabar com fidelidade no sistema proporcional


Se aprovado do jeito que está, o chamado sistema do “distritão” vai encarecer a bolsa das contratações partidárias para as próximas eleições. É que a principal mudança desse sistema é acabar com o voto na legenda, ou na coligação, para que o voto seja no candidato, independentemente do partido. Portanto, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, o distritão acaba com a punição de perda de mandato por infidelidade partidária.
O sistema do distritão é polêmico entre cientistas políticos e especialistas em Direito Eleitoral. Ele acaba com o quociente eleitoral e desestimula as coligações partidárias irrestritas que o sistema eleitoral brasileiro atual criou. Mas não cria distritos, como o nome sugere. Pelo que foi aprovado na Comissão Especial para Reforma Eleitoral da Câmara, cada estado será um distrito — daí o nome “distritão”, em oposição ao sistema distrital, que divide os estados em regiões menores. Como a candidatura passa a ser pessoal, e não mais do partido, especialistas apontam que as campanhas ficarão ainda mais caras.
Mas há outro problema desse modelo, que decorre das intervenções judiciais no sistema eleitoral. Em maio de 2015, o Plenário do Supremo decidiu que ocupantes de cargos majoritários não podem perder o mandato por trocar de partido. Isso significa que eleitos por meio de voto direto, como são hoje os senadores, prefeitos, governadores e o presidente da República, não devem seus votos aos partidos ou coligações que integraram durante a campanha.
Essa obrigação é imposta aos eleitos pelo sistema proporcional, como hoje é o caso dos deputados federais. Pelo sistema atual, nas eleições proporcionais, os votos são destinados ao partido ou à coligação a que o candidato faz parte, ainda que os eleitores tenham apertado o número do candidato na urna. Portanto, se um candidato superar o número de votos necessário para ser eleito, esse excedente é distribuído pelos mais votados da coligação.
A própria jurisprudência do Supremo, quando discutiu a matéria, considerou que a fidelidade partidária é “importante para garantir que as opções política feitas pelo eleitor no momento da eleição sejam minimamente preservadas”.
Nos casos do voto direto no candidato, sem influência da coligação, a lógica se inverte. “As características do sistema majoritário, com sua ênfase na figura do candidato, fazem com que a perda do mandato, no caso de mudança de partido, frustre a vontade do eleitor e vulnere a soberania popular”, registrou a ementa do acórdão da ação em que o Supremo definiu a questão, relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso. A decisão foi unânime.
Caso Marta
O que motivou a decisão do STF foi a proximidade do prazo final de um ano para definições das regras eleitorais do próximo pleito. O objeto da ação de inconstitucionalidade era uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral que previa a cassação de mandato por infidelidade partidária para “eleitos pelo sistema majoritário”.

A urgência era o caso da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP). Na época, ela, insatisfeita por não ter conseguido apoio para suas pretensões ao Executivo paulista, havia acabado de deixar o PT para se filiar ao PMDB.
E o Partido dos Trabalhadores queria que ela “devolvesse” o mandato, numa “ginástica” descrita pelo ministro Dias Toffoli durante o julgamento da ADI: como Marta havia saído da legenda e o suplente dela, de outro partido, fora nomeado ministro das Cidades, deveria assumir o segundo suplente, do PT. “E o que acontece se o primeiro suplente deixa o Ministério?”, perguntou Toffoli, retoricamente.
Em seu voto, o ministro Barroso disse que aplicar a regra da fidelidade a eleitos pelo sistema majoritário, na verdade, ofende o princípio da soberania popular. Sempre que o titular do mandato é cassado, assume o suplente. Nos casos proporcionais, como os votos são na coligação, faz sentido que assuma alguém escolhido pelos partidos para ocupar aquela vaga.
Já nos casos majoritários, a lógica se inverte, explicou Barroso. “Imaginem um senador que foi eleito com mais de 1 milhão de votos. Ele decide mudar de partido e perde o cargo. O mandato passa para o suplente, que não recebeu nenhum voto e, muitas vezes, nem é conhecido de seu eleitor”. Para ele, “isso não faz sentido”.
“Nesses casos, a perda do mandato favoreceria candidato e partido que não receberam votos, em detrimento de candidato que obteve, no mínimo, a maioria absoluta dos votos colhidos no pleito”, disse Barroso. E era o que pretendia o PT no caso de Marta Suplicy.
Olho no peixe
A questão não vem passando despercebida pelos partidos. Logo depois da decisão do Supremo, o Senado passou a discutir formas de criar uma obrigação de fidelidade partidária também para senadores. Queriam uma solução que preservasse mandatos, mas não esvaziasse o poder dos partidos.

Com o distritão, chegou-se a um consenso. O sistema só valerá para as eleições gerais de 2018 e para o pleito local, em 2020. A partir de 2022, valerá o sistema distrital misto, em que os eleitores votam duas vezes, uma no partido e outra, no candidato. Metade das vagas proporcionais passa a ser ocupadas pelos mais votados e metade, pelos indicados pelos partidos.
A partir do momento que entrar em vigor o sistema distrital misto, o suplente de senador passa a ser o deputado federal mais votado daquele partido, já que as coligações também ficam restritas.
De todo modo, o grande ponto negativo do distritão passa a ser a ampliação do descolamento entre Congresso e eleitores. De acordo com o cientista político Jairo Nicolau, da UFRJ, o sistema eleitoral atual aproveita mais de 90% dos votos. Se o distritão valesse nas eleições de 2014, 30,6 milhões de votos seriam jogados no lixo. “No sistema eleitoral em vigor o eleitor pode não eleger ‘seu candidato’, mas o nome escolhido por ele necessariamente ficará em uma das suplências”, escreveu o professor, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo em 2015.
 é editor da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2017, 6h48

Reforma traz benefícios ao trabalhador ao aumentar autonomia e poder de negociação


O professor e economista Fabio Giambiagi, em seu livro “Capitalismo: modo de usar” (Elsevier, 2015) expõe, com diversos exemplos, situações do contexto econômico brasileiro que provam que o país ainda não é capaz de manusear da melhor maneira possível o sistema capitalista em que estamos inseridos. Um de seus exemplos é a baixa produtividade do trabalhador brasileiro quando comparado a outros países, situação que se reflete na baixa competitividade da indústria brasileira.
No jogo político, propostas com vistas a melhorar o ambiente econômico do país são muitas vezes recebidas com grande ceticismo no Parlamento, sendo difícil de conseguir sua aprovação. Além disso, propostas que fazem sentido econômico por vezes são impopulares e acabam sendo atacadas por diversas frentes sociais que resistem a qualquer tipo de mudança – mesmo que seja benéfica para a maioria da população.
A Reforma Trabalhista, recém sancionada pelo Presidente Michel Temer na Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, representa exatamente a situação acima descrita: a proposta de modernização e flexibilização da legislação trabalhista sofreu ataques dos mais diversos lados, desde movimentos sociais que se mobilizavam contra as mudanças, membros da Academia que se fechavam em seu espectro ideológico e o fatídico episódio da tomada da Mesa do Senado por membros da oposição.
De toda sorte, o Governo Federal obteve sucesso em aprovar o importante projeto da Reforma Trabalhista. Em meio a tanta desinformação disseminada – por vezes, com o mero intuito de fazer fumaça e exaltar ânimos – este pequeno artigo optou por explorar pontos da reforma da CLT que acabaram não sendo tão comentados. A Reforma Trabalhista não se resume somente à nova roupagem legal conferida aos acordos e convenções celebrados entre empregado e empregador (inclusão do art. 611-A) ou à extinção da contribuição sindical obrigatória (revogação do art. 601), mas também diversos outros pontos que ainda não foram tão debatidos e que demonstram benefícios aos trabalhadores, sem “nenhum direito a menos”.
Iniciemos com a questão acerca da relativização da hipossuficiência do trabalhador. A Reforma Trabalhista inclui parágrafo único no art. 444 da CLT que “a livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”.
Qual o significado desta disposição? Ora, o trabalhador que possua diploma de nível superior e, atualmente, salário igual ou superior a R$ 11.062,62 poderá dispor, individualmente, sobre os mesmos direitos previstos no art. 611-A, tendo, assim, prevalência sobre a lei.
Para os trabalhadores que possuem tais qualificações, esta disposição abre caminho para uma importante conquista: a possibilidade de solução de seus litígios através de procedimento arbitral. A Reforma da Lei de Arbitragem, em 2015, já havia tentado incluir no texto da Lei n. 9.307/1996 disposição semelhante, mas que acabou sendo objeto de veto pela Presidente Dilma Rousseff quando da ocasião de sua sanção, pois, de acordo com as razões do veto, “acabaria por realizar uma distinção indesejada entre empregados”.
O novo art. 507-A da CLT dirime qualquer dúvida que poderia ainda existir sobre isso: “nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa, nos termos previstos na Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996”.
Desta forma, respeitados os pressupostos de arbitrabilidade (direitos patrimoniais disponíveis), empregados que aufiram tal remuneração passaram a ter mais uma possibilidade para resolução de seus litígios, concretizando o princípio da inafastabilidade da jurisdição e tempo razoável do processo.
No mesmo sentido, outro importante ponto a se tocar é a inclusão da jurisdição voluntária no texto da CLT. Com a inclusão do art. 855-B, as partes poderão buscar ao Poder Judiciário a homologação de acordo extrajudicial, desde que apresentem petição conjunta, assinada pelos advogados de cada parte. Ao empregado, faculta-se a possibilidade de ser assistido pelo advogado do sindicato de sua categoria.
Esta disposição altera a dinâmica das negociações extrajudiciais entre empregadores e empregados. Atualmente, a CLT não admite a negociação entre empregado e empregador como forma de quitação trabalhista, não sendo reconhecida estas transações pelos tribunais.
Como se verifica nos exemplos acima, a Reforma da CLT traz para o empregado uma maior autonomia para decidir situações essenciais do seu cotidiano, gerando maior integração entre empregados e empresa. Usando novamente das palavras de Giambiagi, tal cooperação entre as duas pontas da relação de trabalho se traduz em maior eficiência, aumentando a produtividade da empresa e gerando avanços na eficiência econômica.
A maior produtividade e eficiência da indústria brasileira faz com que ela volte ao cenário competitivo internacional, atraindo novos investimentos e fomentando a inovação. Com isso, é de esperar que novos postos de emprego sejam criados, como efeito direto da modernização da legislação laboral.
Como colocado por Gesner Oliveira, as novas disposições da CLT favorecem justamente quem mais cria postos de trabalho: as pequenas e médias empresas, a partir da redução dos custos de transação no mercado de trabalho. Além disso, o ambiente econômico atual, pautado nas start-ups e na economia de compartilhamento, é extremamente dinâmico, demandando respostas rápidas e flexíveis aos problemas que surgem. Nunca é demais lembrar que a CLT foi promulgada há 74 anos, quando a população brasileira era eminentemente rural.
A Reforma Trabalhista é somente uma peça no quebra-cabeças que deve ser resolvido para que o país consiga enfrentar e sair vitorioso da crise que enfrenta nos últimos anos. Outras peças indispensáveis para esse objetivo são a reforma da previdência e a reformulação do sistema tributário. Nesse aspecto, percebe-se que nem todas as reformas são negativas igual muito se tem pregado. É louvável a iniciativa da Presidência da República e de sua equipe econômica para buscar essas finalidades, criando um ambiente propício de crescimento econômico e de maior bem-estar para os brasileiros.
 é ex-presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OAB-Maringá/PR. Sócio da Renzetti & Botti Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2017, 7h02

Reforma política e "distritão": o eterno retorno no Direito Constitucional


A comissão da Câmara dos Deputados que analisa a reforma política aprovou, na calada da noite — em uma espécie de midnight congressman act —, a alteração do sistema eleitoral para composição dessa mesma Casa Legislativa. Proposital ou não, o deslinde preliminar dessa questão em meio à madrugada tem um potencial simbólico incomensurável. No modo como foi encaminhado consensualmente pela comissão, o novo modelo político seria implementado em dois tempos: primeiro, uma regra de transição, que valeria para as eleições de 2018; depois a implementação, por assim dizer, efetiva do novo modelo, a partir de 2022. Na fase de transição, o sistema eleitoral adotado seria o chamado “distritão”, no qual cada unidade federativa é considerada um distrito que elege, pelo voto majoritário, os candidatos mais votados segundo o número de cadeiras a que tem direito na Câmara dos Deputados. Na fase de implementação efetiva, a partir da eleição de 2022, teríamos um sistema misto, a combinar o distrital com o proporcional.

Como dito acima, o potencial simbólico da votação noturna salta aos olhos. Ademais, é também igualmente impactante o modo como nossos representantes desprezam a inteligência alheia. Essa comissão foi constituída para cumprir uma demanda legítima da sociedade que se projeta no horizonte pelo menos desde junho de 2013. Com efeito, existe um lugar comum em nosso espaço público de discussões no sentido de que há pontos de nosso sistema político que precisam ser reformados. Nessa medida, um dos pontos sensíveis dessa demanda passa, exatamente, pela modificação do sistema eleitoral utilizado para preencher as vagas disponíveis na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores na perspectiva de superar — ou, pelo menos, diminuir — as disfuncionalidades que são sabidamente conhecidas e que parecem ter encontrado o paroxismo nas últimas eleições. Assim, o relatório apresenta, pro futuro, uma solução razoável. Um sistema eleitoral que, sem embargo das possíveis divergências quanto a ser ele ou não o melhor modelo, possui uma reconhecida autoridade.
Mas essa solução só valerá a partir de 2022. Em 2018, todavia, o relatório nos impõe o — risível — “distritão”. É absolutamente constrangedor perceber que essa manobra se apresenta como uma pornográfica usurpação de uma demanda legítima da sociedade em favor da preservação do modo de se fazer política no Brasil. Exatamente aquele que, pelo menos desde 2013, vem sendo rejeitado e censurado pela unanimidade dos brasileiros.
Dizendo de forma direta e sem rodeios: a opção pelo distritão representa uma tentativa de preservação do establishment político. É fato notório, amplamente relatado no noticiário político, que os políticos tradicionais estão temerários de que a opção por um sistema eleitoral alternativo, com maior possibilidade de impacto sistêmico, possa levar a uma renovação nos quadros da Câmara dos Deputados em prejuízo das velhas lideranças político-partidárias. A primeira tentativa de autopreservação surgiu com a pretensão de se adotar o voto em lista fechada (que seria o extremo oposto do distritão: neste o eleitor vota apenas no candidato; naquele o voto vai apenas para o partido). Diante da rejeição geral pelo modelo, o establishmentvoltou a considerar uma proposta, derrotada ao tempo da “era Cunha”, que serve aos seus propósitos, porém permite uma maior manipulação das informações, de modo a confundir a opinião pública a respeito de suas verdadeiras intenções. O presidente do Senado, por exemplo, pode justificar “racionalmente” a opção pelo distritão, aduzindo a falta de tempo hábil para que a Justiça Eleitoral organize os distritos específicos e regionais já para eleição de 2018 como fundamento para que essa fosse a regra de transição...! Ora, se essa informação for realmente verdadeira, por que não estabelecer, então, que, para 2018, o sistema eleitoral continuará sendo aquele previsto pela Constituição de 1988?
O nosso sistema proporcional pode até não funcionar adequadamente (não por demérito do sistema em si, mas, sim, pelo modo como ele é articulado entre nós, com a possibilidade de disputa com coligações partidárias e sem a previsão de uma cláusula de barreira), todavia é possível afirmar que, mesmo assim, ele é melhor do que o distritão. Afirmando sem medo de errar: se o relatório aprovado pela comissão prevalecer, estaremos como que a marchar para trás no quadro de evolução do nosso sistema político.
Para aqueles que apreciam aquelas listas púberes que enumeram os “prós” e “contras” de algo, a única coisa que podemos admitir como certa na fileira dos “prós” é que o distritão se apresenta como um sistema eleitoral de simples compreensão para o eleitor. Todo o resto, na verdade, viria na fileira de “contras”. Note-se: i) como a disputa entre os candidatos se dá perante todos os eleitores da unidade federativa, os partidos tendem a lançar menos nomes para a escolha; ii) os escolhidos para a disputa, por sua vez, serão aqueles com maior projeção, preferencialmente os já conhecidos pelos eleitores, seja pela exposição que possuem na mídia, seja pela relação antecedente com a máquina pública; iii) as campanhas continuaram a exigir significativo dispêndio financeiro, uma vez que os candidatos terão que buscar votos em todo o Estado, necessitando, para isso, de maior capilarização eleitoral. Há mais. Porém, estamos satisfeitos com essas três.
Há também um falso “pró”. Ou, pelo menos, um pró “meia-boca”: afirma-se, em favor do modelo, que o distritão acabaria com o “efeito Tiririca”, que seria uma das mais censuráveis disfunções de nosso sistema proporcional (consubstanciado no seguinte fato: o eleitorado que confere expressiva votação ao candidato midiático, como no caso do deputado Tiririca, elege também, sem ter a exata consciência disso, um político tradicional de baixíssima expressão popular). Sem embargo, essa é uma verdade apenas parcial: de fato, não haveria a possibilidade de, com sua expressiva votação, o candidato midiático carregar consigo políticos de baixa popularidade. Mas, por outro lado, é possível prever, com alto grau de probabilidade (e nem precisa ser vidente para isso), que um candidato como o deputado Tiririca acabará reeleito numa disputa regida pelo distritão. Com isso, privilegia-se a manutenção dos atuais quadros, segurando uma vaga que poderia ser de algum novo ator da política nacional. Agregue-se a isso que os partidos têm o controle de quais candidatos serão lançados para o escrutínio popular. Portanto, a possibilidade de manter-tudo-como-está seria altíssima.
Importante considerar, também, que o distritão seja, talvez, o sistema eleitoral menos testado de todos aqueles que se apresentam no horizonte das discussões sobre a reforma política. Pouquíssimos países, como Jordânia e Afeganistão, o adotam. Existe, também, a experiência do Japão, que chegou a adotá-lo no segundo pós-guerra, mas resolveu abandoná-lo no final dos anos de 1980, porque houve uma percepção generalizada de que o sistema político poderia degenerar-se em um modelo próximo àquilo que Marcos Nobre chama, entre nós, de Peemedebismo[1] Provavelmente, o “brilhante” histórico do distritão deve ter motivado nossos congressistas, com apoio do governo, a vê-lo com bons olhos. Afinal, se aqui o sistema proporcional não está funcionando muito bem, talvez países como Afeganistão e Jordânia — exemplos de democracias muito bem consolidadas –— possam ajudar-nos a aperfeiçoar o sistema político brasileiro.
Ironias à parte, é preciso que reconheçamos que há certos temas nacionais que devem ficar acima de nossas paixões por partidos. Podemos discordar se o sistema distrital puro é o melhor para o modelo político que desejamos no Brasil; se o sistema proporcional pode chegar a funcionar corretamente com uma cláusula de barreira efetiva; ou ainda, se o melhor, para nós, seria mesmo seguir o caminho alemão, com a adoção de um sistema eleitoral misto. Podemos discordar sobre qual é o melhor, mas certamente partimos do pressuposto comum de que todos eles são sistemas consolidados e que já passaram por algum teste relevante, em regimes democráticos muito bem estabelecidos. Em um contexto como este, faz parte do jogo democrático aceitar a escolha por um desses modelos, ainda que não seja aquele que melhor se ajuste às nossas convicções pessoais. Todavia, se a escolha positiva por um modelo é uma questão aberta e necessariamente controversa, uma definição ex adverso, ou seja, a respeito daquilo que não queremos (em hipótese alguma), parece-nos ser consensualmente possível. Assim, seria possível afirmar que, de todos os sistemas eleitorais em disputa, dois deveriam ser — de plano — rechaçados: o voto em lista fechada e o distritão. E isso deveria ser uma voz comum, atravessando todos os atores sociais, independentemente de suas paixões partidárias.
Temos exemplos de sobra de como o sistema político no Brasil manobra as regras democráticas para atingir seus desideratos. Lenio Streck nos conta, em seu Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, a história do regulamento Cesário Alvim (Decreto 511, de 23 de junho de 1890), que, para balizar os trabalhos da Constituinte que geraria a Constituição de 1891, transformou o sistema distrital puro do Império para o voto em listas, o que permitiu que os republicanos construíssem uma maioria para aprovar seu projeto de Constituição sem maiores problemas[2]. A história é sempre a mesma: quem controla os lugares de poder estabelece regras vazadas pelos interesses pessoais utilizando alguma retórica de vontade popular. Assistimos a um eterno retorno do mesmo?
Talvez a literatura possa nos socorrer, na tentativa de compreender melhor essa situação. Com efeito, em A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, o romancista peruano descreve o caráter autoritário da modernização do Estado brasileiro ao falar de uma das maiores tragédias ocorridas após a proclamação da República, que foi a Guerra de Canudos. Um movimento messiânico mal compreendido, formado por pessoas que viviam à margem da sociedade e que sofriam cotidianamente com a seca e com a violência, ora do policial (os volantes), ora do banditismo local (o cangaço e os jagunços a serviço do latifúndio), acabou duramente sufocado pelo Exército brasileiro. A partir dessa tragédia social, o romance retrata alguns elementos fundamentais da organização da jovem República. A implementação de um projeto autoritário de construção da nação pode ser percebido no idealismo militar do Coronel Moreira Cesar e na presença do poder tradicional e personalista representado pelos personagens Barão de Canabrava, líder dos monarquistas, e Epaminondas Gonçalves, principal representante do partido republicano. Se no primeiro caso temos um representante do projeto positivista de uma ditadura militar — tanto que Moreira Cesar foi um grande aliado de Floriano Peixoto —, os dois últimos personagens representam o velho estilo com que as elites brasileiras sempre procuram sequestrar a agenda política, ao transformar temas públicos em assuntos da esfera doméstica. Foi nesse sentido que, numa determinada passagem do romance, o Barão de Canabrava e Epaminondas Gonçalves, antigos adversários políticos na Bahia, resolvem dialogar sobre a necessidade de uma “nova” ordem política como reação a Canudos. Nas palavras do primeiro, “[...] É hora de fazer as pazes, Epaminondas. Esqueça as divergências jacobinas [...]. Assuma o governo e defendamos juntos, nesta hecatombe, a ordem civil”.
Pensemos o seguinte: ordem civil, no contexto da reforma política, pode ser a transformação do sistema político tão desejada pela sociedade brasileira ou a manutenção do establishment. Assim, seria de se perguntar: “Ordem civil” de quem, cara-pálida?!

[1] Apesar desse conceito fazer referência ao PMDB, Nobre destaca que o fenômeno do peemedebismo não se reduz somente a esta organização partidária, mas é utilizado em sua obra para explicar o funcionamento do sistema político brasileiro (Cf. NOBRE, Marcos. Imobilismo em Movimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, passim).
[2] STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 496.

 é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).
 é professor de Teoria Geral do Estado, doutorando em Direito Público pela Unisinos e membro do grupo Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).
Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2017, 8h05

Nenhum comentário:

Postar um comentário