Revista Veja
Uma das emoções mais vibrantes que as novelas do tempo das nossas avós conseguiam criar era a da espera pelo beijo do mocinho na mocinha – em geral, era ele que tomava a iniciativa. Há tempos, entretanto, já não é o tipo de coisa que provoca rufar de tambores, tantas vezes previsível. E, para falar a verdade, os pares românticos não andam causando frisson ultimamente. Mas eis que um casal homossexual conseguiu fazer o público reviver a expectativa pelo amor, trajetória que teve torcida desde a primeira cena até o final feliz e inédito na história das novelas que vimos na noite desta sexta (31), em Amor à Vida (Globo, 21h).
Em clima de harmonia familiar, Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) deram um beijo de amor, em boa medida de empolgação para o relacionamento dos personagens. Foi apaixonado, mas não singelo; verdadeiro, mas com cuidado para não chocar. A cena confirmou os sinais emitidos neste sentido durante os 221 capítulos da novela de Walcyr Carrasco, que soma esse mérito à exitosa carreira de teledramaturgo. É um marco, em mais de um sentido, ainda que Amor à Vida, em si, não tenha sido uma novela exemplar.
O público se apaixonou pelo malvado de língua ferina e o carneirinho de fala doce, mas é claro que foi levado a isso, numa empatia construída com destreza pelo autor. Félix e Niko foram grandes personagens, duas faces de uma moeda que espelhar na novela o tema da aceitação. Um, solar e bem-sucedido, feliz com sua homossexualidade. O outro, soturno e amargo, atormentado pelo pai homofóbico. Foi um grande drama gay, cheio de bordões sagazes e divertidos. O amor dos dois homens engoliu e salvou a novela.
Os críticos do gênero podem achar exagerado e até fazer muxoxo diante do fuzuê que a expectativa pela cena vem causando nas redes sociais. Mas a importância dela vem do inédito e da resistência declarada da emissora em exibi-la no programa mais visto no país. É claro que a decisão anterior de levar ao ar uma novela centralizada num homossexual já mostrava que a mentalidade mudou. E a exibição da cena só aconteceu porque Niko e Félix passaram 220 capítulos conquistando o público e alimentando a expectativa para ogrand finale. “Toda cena de novela é consequência da história, responde a uma necessidade dramatúrgica e reflete o momento da sociedade. O beijo entre Felix e Niko selou uma relação que foi construída com muito carinho pelos dois personagens. Foi, portanto, o desdobramento dramatúrgico natural dessa trama. A pertinência desse desfecho foi construída com muita sensibilidade pelo autor, diretor e atores e assim foi percebida pelo público. É importante lembrar que o relacionamento homossexual sempre esteve presente nas nossas novelas e séries de maneira.
Para merecer o beijo, Félix teve de passar de vilão a mocinho, ficou de castigo no núcleo cômico e, mesmo quase transformado em outro, continuou agradando. Se há algo de glamouroso no posto de “ator que protagonizou o primeiro beijo entre homens numa novela da Globo”, deve ficar com Mateus Solano – o personagem sugou a novela, como uma ilha cercada de tramas pouco desenvolvidas por todos os lados. Nem Valdirene (Tatá Werneck), que começou com potencial, resistiu ao desgaste.
Com mais de duas horas de duração marcado pelo som dos violinos, o capítulo não teve grandes surpresas e, em vez disso, apresentou um sequência de finais bonitinnhos – os conflitos sumiram todos e, num passe de mágica, tudo se acertou. A exceção foi o desfecho à mexicana para César (Antonio Fagundes) e Pilar (Susana Vieira), com ele marcado pelas sequelas de um AVC – claro que lembrou o Dom Lázaro interpretado por Lima Duarte de Meu Bem, Meu Mal (1990).
Enfim, foi a “mami poderosa” a grande vilã da novela: sabotou o carro da amante do marido e acabou provocando a vingança de Aline (Vanessa Giácomo), que desgraçou a vida dele. Aline, por sua vez, numa fuga mal-sucedida, morreu eletrocutada na cerca da prisão, mas longe de ter um final apoteótico de uma Carminha (Adriana Esteves) ou de uma Nazaré (Renata Sorrah).
Apesar do peso que cena de beijo ganhou no capítulo final, Walcyr, com sensibilidade, deixou o fechar das cortinas com César e Félix. Homofóbico que, trocando em miúdos, provocou os sentimentos que foram a força motriz da novela, ele terminou quase cego e dependente do filho homossexual que sempre renegou – mais uma semana, e Félix terminaria canonizado. Numa ótima cena em clima de Morte em Veneza, o filho ouviu aquele “eu te amo” que sempre quis. E os tempos de bebês na caçamba ficaram para trás.
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