domingo, 29 de março de 2020

Solidão. Testemunhar cenas das atribulações que passa o mundo a crise COVID-19




Atribulações
Numa vazia e chuvosa Praça São Pedro, o Papa caminha sozinho. É uma imagem histórica e comovente, condensa o complexo sentimento que temos vivido em todo o mundo: a solidão.
Testemunhar esta cena me fez entender o que senti durante a semana quando, dentre as tantas atribulações do dia a dia, me peguei tendo de decidir sobre competências administrativas do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) e do Instituto Médico Legal (IML). Não quero aqui nesse espaço tentar explicar como funcionam os procedimentos, mas o quanto isso mexeu comigo.
Ainda não temos nenhum óbito por COVID-19 no Maranhão, mas diante do que já ocorre em outros estados, coube a mim ter de regular os procedimentos relacionados aos óbitos em razão da chegada da pandemia no Brasil. Parei por alguns minutos para refletir sobre tudo aquilo e nada fazia sentido.
Não era mais a rotina da burocracia da administração pública, à qual me habituei e aprendi a exercer, mas uma decisão sobre vidas que se perderão para essa impiedosa doença, algo que não tem como se tornar rotineiro, que não deve ser encarado como normal.
Como se não bastasse, me encontrei tendo de normatizar o protocolo de velórios: no máximo dez minutos, ao ar livre, com limite de até dez pessoas e caixão totalmente lacrado. Se possível, de zinco.
À dor da perda, soma-se a tragédia de não poder sequer dizer adeus aos seus. De não poder receber um abraço, de não poder trocar conforto, de ser impedido de chorar. Conheci a outra face desta doença, que interfere não somente no modo como vivemos, mas no modo como morremos. Ela nos proíbe de realizar o rito de passagem, essencial a todos os povos desde tempos imemoriais.
Esta doença é cruel e devastadora pela sua alta contaminação e maior letalidade com os nossos idosos, mas também, pelo estado de anomia que promove. Não poder estar perto de quem amamos causa uma dor profunda, ainda mais em um contexto tão difícil como é o momento de despedir-se de um ente querido.
E isso já está acontecendo em muitos lugares, basta procurar notícias sobre a Itália e as pessoas, principalmente as de mais idade, que morrem sem poder se despedir de familiares e amigos. São relatos de velórios e sepultamentos vazios, sem falar na terrível imagem de caminhões do exército italiano transportando centenas de caixões.
Por isso, peço novamente ao povo maranhense, confiem na ciência, escutem os profissionais da saúde: fiquem em casa. Estamos trabalhando incansavelmente, dia e noite, para minimizar os impactos da Covid-19 em nosso estado.
Assim como o Papa, que sozinho nos passa uma mensagem de esperança, lembre-se do homem ou da mulher que partiu do lar para proteger os seus filhos, que não vê seus pais diabéticos há semanas, que veste sua roupa para encarar mais um plantão. Hoje, ele poderá salvar uma vida ou perder a sua própria. É também solitária a jornada de quem se arrisca todos os dias para manter os outros com vida.
Na Praça São Pedro completamente vazia, não era mais possível distinguir se o Papa intercedia por nós ou se nós, cada qual à sua maneira, intercedia por ele. A mensagem era clara: que sejamos um só (João 17:21). A tempestade é desafiadora, mas o nosso timoneiro não tem medo e ele nos indaga: por que tens medo? Era a mensagem de Cristo séculos atrás, é a mensagem de Francisco para todos nós nos dias de tormenta de hoje. E meu humilde pedido para todos nós do Maranhão.
Carlos Lula

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