Jorge Sampaio morreu esta sexta-feira, aos 81 anos. O ex-presidente da República estava internado no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, desde o final de agosto, na sequência de dificuldades respiratórias.
Perdeu a liderança do PS para Guterres, derrotou Marcelo em Lisboa, foi ultrapassado por Cavaco nas legislativas e ultrapassou-o nas Presidenciais, sucedeu a Soares em Belém. Jorge Sampaio desempenhou os mais importantes cargos políticos em Portugal durante quase 30 anos. Nos restantes, que foram muitos mais, empenhou-se de forma total naquilo que começou a defender antes de sequer ter chegado à maioridade: a permanente preocupação com os outros.
Foi o Presidente da República mais vezes discretamente corajoso, o ex-chefe do Estado mais generoso e mais reservadamente interventivo, a personalidade política com saúde mais frágil e porventura também a mais culta. Homem de família, afetivo e afável, exigente e austero, Jorge Sampaio entregou-se à vida como um "prisioneiro da grande ansiedade por um futuro melhor", como de si próprio disse em entrevista à RTP em 1992. Morreu hoje no Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, onde estava internado há mais de uma semana com problemas respiratórios, a que se somavam várias batalhas ganhas contra um coração de válvula malformada. Tinha 81 anos e, ao contrário do que tantas vezes lhe apontaram, um percurso cheio de decisões claras, destemidas e muitas vezes solitárias, como convém a um "ser livre e incondicionável". "Tomar posição foi coisa que sempre fiz. Quem o fez, custasse o que custasse, escolheu e não abdicou", respondeu a Maria João Avillez, numa conversa em que a jornalista lhe perguntara se a vida dele fora feita mais de abdicações do que de escolhas.
A quem entende que Jorge Sampaio, lisboeta de gema criado em Sintra, foi essencialmente o homem dos discursos difíceis, o famoso sampaiês, que em 2004 interrompeu o Governo de Pedro Santana Lopes e que um dia disse que "há vida para além do orçamento", há uma imensa e larga estrada que escapa. A timidez, a discrição, a elegância e possivelmente uma certa ausência de carisma aliada a um certo mau feitio colocaram-no sob um holofote de média luz que está longe de fazer-lhe justiça. Sampaio foi um guerreiro, humanista e um progressista. Era criticado quando, nos anos 60, dizia que "a democracia global tem que envolver também a democracia participativa e não só a representativa". E quando "falava na cooperação com os novos países de expressão portuguesa", acusavam-no de ser terceiro mundista. Posicionado à esquerda do PS desde sempre, buscou sempre consensos, com os pés no chão e olhos postos no futuro - e nos outros. "Há um movimento permanente na minha vida, é o de ter preocupações com aquilo que nos cerca."
"Fui um aluno atento da vida"
Nasceu no seio de uma família burguesa, "democrática e plural", pela qual foi orgulhosamente marcado. "O que molda a vida das pessoas é sempre a sua educação", justificaria. Da mãe, professora privada de inglês, herdou o humor e o rigor. Do pai, médico ideologicamente comprometido com o Serviço Nacional de Saúde e investigador, o culto da solidariedade e do serviço público. Do irmão, o psiquiatra Daniel Sampaio, sete anos mais novo, beberia outras influências. Com Maria José Ritta, com quem casou em abril de 1974, e de quem teve dois filhos, Vera e André, procurou replicar o modelo familiar que o inspirou. Não fosse esta família, disse, e nada do que fez fora de casa, no país, no partido, na política, teria sido possível.
Fortemente empenhado nas causas coletivas e na intervenção cívica quase até ao último dia - o seu último artigo de opinião, publicado no "Público" a 26 de agosto, "Dever de solidariedade", é um apelo aos parceiros da plataforma internacional que fundou para ajudar estudantes sírios e agora também jovens afegãs -, Sampaio foi, desde logo, o símbolo da luta estudantil nos anos 60, um dos jovens com ideais cívicos e políticos mais cobiçados pela Esquerda nos anos 70 e um exímio advogado de causas. "Fui um atento aluno da vida. A advocacia foi uma grande experiência, porque foi muito diversificada, desde as questões humanas mais pesadas, mais difíceis, até às questões comerciais ou de família. E a experiência política, desde estudante, foi uma experiência gigantesca."
Foi, aliás, no ano da campanha do general Humberto Delgado às presidenciais, em 1958, ele ainda com 19 anos numa ditadura em que a maioridade era atingida apenas aos 21, mas já presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que despontou o seu entusiasmo pela política. "Sentíamos que era preciso fazer alguma coisa para mudar tudo aquilo [o regime]. Fiquei, sem dúvida, agradecido à experiência que isso me deu e à espantosa qualidade que deu a todos nós: a capacidade de questionar o futuro e querer sempre melhor. Sim", reconheceu na já referida conversa com Avillez, "sou prisioneiro de uma grande ansiedade por um futuro melhor. Isso, sem dúvida. Mas vale a pena."
"Um ocaso magnífico"
Essa permanente inquietação - de resto, sublinhada por António Costa em 2019, na sessão de homenagem promovida na sede do PS: "Tinha todo o direito de estar a gozar a tranquilidade da vida, mas a vida traz-lhe intranquilidade" - fê-lo fundar o MAR (Movimento de Ação Revolucionária), o MES (Movimento de Esquerda Socialista) e o IS (Intervenção Socialista) antes de, em 1978, tornar-se militante do PS (Partido Socialista), então com o número 102.279. Mais tarde reconheceria várias vezes "o erro" de não ter-se inscrito mais cedo, em 1963, aquando da fundação do partido. Mas esse atraso numa adesão que aos 80 anos denominou como um "ocaso magnífico" não inviabilizou as quase três décadas ininterruptas de cargos políticos que se seguiram e que se confundem com a história do país democrático, e que estão contadas numa biografia monumental de José Pedro Castanheira, com mais de duas mil páginas.
Sampaio, o ruivo que os colegas tratavam por "cenoura", foi secretário-geral do PS (1989-1992), presidente da Câmara de Lisboa (1990- 1996), candidatura que ousou decidir sem consultar o partido e que pela primeira vez juntou a Esquerda assim derrotando Marcelo Rebelo de Sousa, e sucessor de Mário Soares em Belém (1996-2006), naqueles que terão sido os dois mandatos mais complexos da democracia portuguesa. Pessoalmente, o Presidente sobreviveu a duas operações ao coração; politicamente, atravessou cinco governos, assistiu ao orçamento limiano e ao pântano de Guterres, conviveu com a "tanga" de Durão Barroso e com a sua "mentira" sobre a Cimeira das Lajes, interrompeu o caminho de Santana Lopes dissolvendo a Assembleia e abriu o caminho para a eleição de José Sócrates. E ainda promoveu os primeiros referendos nacionais, foi recordista de vetos (22, todos ganhos), percorreu os 308 concelhos do país, passou pelos escândalos da Universidade Moderna e da Casa Pia e teve um papel fundamental na independência de Timor Leste, que logo visitou. Foi o primeiro chefe do Estado português a fazê-lo.
O presidente que podia ter sido pianista
Mas, na verdade, Jorge Sampaio poderia ter sido fotógrafo, pianista ou cantor. "Quando assisto a um concerto, sinto sempre que gostava de estar do outro lado", confessou o colecionador de discos e pinturas. O seu espírito e a sua liberdade artística notou-se quando ousou escolher Paula Rego para um magnífico quadro oficial, tão pouco ortodoxo, e porventura mais heterodoxo ainda do que o de Soares pelo Pomar - a escolha desse retrato é um retrato em si. Sampaio não voltaria a subir ao palco de nenhuma sala de espetáculos como nas prestações da sua juventude, mas conquistou a cena internacional logo no fim da presidência da República, escolhido que foi, primeiro por Kofi Annan e depois por Ban Ki Moon, primeiro para lutar contra tuberculose e depois para unir as civilizações. O desempenho dessas funções valeu-lhe uma distinção da Organização Mundial de Saúde e o primeiro prémio Nelson Mandela instituído pelas Nações Unidas para premiar "feitos e contribuições excecionais ao serviço da humanidade".
Se há padrão no percurso deste homem laico mas crente sportinguista, além da aposta na "educação como caminho para a excelência", é o da união, do otimismo e o da não desistência. "Por uma razão fundamental: quem tinha 34 anos no 25 de abril, uma vida profissional feita e estava habituado à ditadura, não concebia que passados estes anos pudéssemos estar onde estamos. O que era a mortalidade infantil, a incapacidade de saber ler e escrever, a pobreza generalizada, a agricultura de morte... O salto que se deu!", exclamou em 2018, sobre o estado do país, numa entrevista ao semanário "Expresso".
Não por acaso, e sem ignorar "o caminho estreito" para o desenvolvimento interno num mundo em mudança, Jorge Sampaio pediu no dia da homenagem que lhe fez o PS: "A necessidade destes tempos é nunca desistir, está tudo em aberto. Não desistam!"
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