Sobre varrer os Sarney da política maranhense, Dino diz que foi positivo: “se abriu espaço para outras opções”
Daniela Pinheiro, UOL – A menos de duas semanas de deixar o governo do Maranhão, onde, entre conquistas sociais significativas, sobretudo na área de educação e saúde, conseguiu sepultar a oligarquia Sarney – que mandou e arrasou o Estado por anos sem fim —, o governador Flávio Dino tem usado o Twitter para criticar a gorda fatia da esquerda que justifica o ataque de Putin à Ucrânia.
Também não mede palavras ao comentar os desafios de um eventual governo Lula. Para ele, que depois de décadas no PCdoB migrou para o PSB (Partido Socialista Brasileiro), a eleição presidencial ainda não está definida, e o sentimento do “nem ele, nem aquele” vai dominar a campanha eleitoral.
Tem gasto a sola do sapato percorrendo o interior do Maranhão, inaugurando obras que estampam seu nome em placas, dormido pouco e comido muito. Ele lamenta a conjuntura adversa enfrentada nos últimos anos de seus dois mandatos — que começaram com recessão, passaram pela pandemia, pela hostilidade do governo federal e terminam com um espectro de guerra generalizada —, mas acredita ter feito um bom governo. Depois de quase oito anos ocupando o Palácio dos Leões, Dino vai se candidatar ao Senado. Pesquisas eleitorais o colocam com vantagem estratosférica diante dos concorrentes. Depois da eleição, deve dar um pulinho em Lisboa e no Porto, onde nasceu seu avô materno. A conversa foi editada para melhor compreensão.
Daniela Pinheiro: Como se preparar para que Bolsonaro não mele a eleição?
Flávio Dino: A primeira coisa é entender que esse risco existe. É preciso, desde já, manter uma linha direta com os outros Poderes, sobretudo o Judiciário. Quando se pensa naquela tentativa golpista de 7 de setembro de 2021, não há dúvida de que a atuação do STF (Supremo Tribunal Federal) foi decisiva. É preciso reforçar a rede de proteção do Estado brasileiro para além da política em si. Isso inclui empresariado, imprensa, sociedade civil. Eu acho que Bolsonaro não reúne condições para empreitadas golpistas, mas não devemos nunca nos esquecer de que, se ele puder, fará qualquer coisa para evitar as eleições democráticas no Brasil.
Como vê a geringonça brasileira — como está sendo chamada a chapa Lula-Alckmin, em alusão à coligação dos socialistas em Portugal com outros partidos, o que viabilizou a volta da esquerda ao poder?
Tenho citado muito a experiência portuguesa, embora ela tenha perdido força. Também o que foi feito África do Sul pra superar o apartheid, o que houve com a Frente Ampla uruguaia, a Concertación chilena. Só esse tipo de reorganização de forças no campo da esquerda é que vai permitir algum sucesso nas urnas.
O que impede isso de acontecer, em três palavras?
É um engenho institucional novo, estamos aprendendo ainda. A proibição de coligações proporcionais e a possibilidade de federações partidárias (duradouras e mais sólidas) são novidades que vieram para ficar. A fusão do PSL com DEM, por exemplo, é um indicador de mudanças e de redução do número de legendas eleitorais no país.
Se fosse Lula, o que faria?
Acho que ele está indo bem. Está dialogando amplamente, sem preconceitos. Está olhando para frente, não para trás. Tendo em vista que a tarefa principal é derrotar o bolsonarismo, é preciso identificar o maior número de pontos de convergência possível, coligações e apoios estratégicos. Só é possível aglutinar forças políticas de verdade quando se faz uma mediação programática. Isso quer dizer: quando se reconhece as diferenças, os pontos de vista, quando todos os envolvidos se sentem contemplados e representados na defesa de um programa. Temos de compreender esse próximo governo Lula como uma repactuação democrática. A resposta ao extremismo bolsonarista não é outro extremismo. Para derrotá-lo, é preciso se diferenciar dele. O programa tem que ser moderado, mediado, valorizando o pluralismo.
Diz-se que um dos grandes problemas da esquerda brasileira é ego, vaidade. Ninguém consegue ceder ao outro, tipo “farinha pouca, meu pirão primeiro”…
(risos) Embora haja esses momentos de divisão, há exemplos de que isso foi possível, como na Constituinte.
A Constituinte foi há 34 anos, quando o país saía da ditadura e o quadro político era outro. Não é muito diferente o clima?
É verdade. É claro que a conjuntura política se depreciou muito desde então, mas essa união de partidos é algo possível, mas não é simples.
A esquerda passa vergonha quando justifica a invasão russa, com o argumento de que foi a Ucrânia que rompeu o trato de não pedir para integrar a Otan?
Passar vergonha é um pouco forte demais, né? Eu diria que é uma posição errada, muito equivocada. É uma incoerência, porque se legitima a interferência externa na política ucraniana, pela opção soberana que aquele país resolve adotar. Isso legitima todos os gestos imperialistas dos Estados Unidos, por exemplo.
Em que sentido?
Se você condena os gestos imperialistas e intervencionistas dos Estados Unidos na África, no sudeste asiático, no Vietnã, na América Latina, você tem que, por coerência, defender a autodeterminação de todos os povos. Por isso, acho um erro político e histórico.
A posição de algumas forças da esquerda não mostra que ela não consegue se entender nem em pontos básicos, como aceitar matar gente em nome de questões geopolíticas?
Não é só do nosso lado, né? O bolsonarismo está dividido, a direita está dividida. Em geral, a política brasileira é muito desorientada nesse aspecto.
Lula terá mais dificuldade do que parece ter hoje, quando ainda lidera com folga as pesquisas eleitorais?
Acho que Lula é franco favorito, principalmente devido à sucessão de erros político-administrativos de Bolsonaro. Na questão da Ucrânia, ele comete mais um, porque política é também simbologia. Então: o mundo em pânico, o mercado em pânico, e o cara na quarta-feira de cinzas fica na praia.
Os bolsonaristas não estão nem aí se o presidente estava na praia quando estourou a guerra ou quando morriam milhares por dia de covid-19 no Brasil.
Esse pessoal dele é minoria. O que ele faz é um tremendo erro político. Ele se autossabota. Ele se encanta com a bolha dele, mas essa bolha é insuficiente para ganhar a eleição. É por isso que Lula é favorito. Agora, a vitória não é dada nem é automática. Até porque quem vai decidir essa eleição é o “nem-nem”.
Os que não querem nem Lula nem Bolsonaro.
Sim. A meu ver, Lula tem 40 pontos cristalizados. Bolsonaro tem 25. Então 40 + 25. Mas tem um meião grande aí, o nem-nem, que gostaria de votar em outro, mas não se identifica com a terceira via porque é o campo mais atrapalhado, mais dividido, fragmentado, não tem programa, não tem nem rosto. As pessoas votam em ideias, mas ideias que são encarnadas e materializadas por homens e mulheres. A terceira via procura um rosto e não acha. O que o eleitor vai fazer? Vai para o que é mais ou menos conhecido — no caso, Lula e Bolsonaro. Um pela direita e outro pela esquerda. O nem-nem vai ficar boiando até o segundo turno. Vamos precisar de um papel muito ativo da Justiça Eleitoral, o que não houve em 2018. Conter fake news, mentiras, campanhas de difamação no WhatsApp, Telegram.
A impressão é de que a Justiça Eleitoral não sabe bem o que fazer. Nem aqui nem em canto nenhum do mundo.
É um grande desafio, porque isso é uma modalidade de fraude eleitoral. Eu fui juiz eleitoral. A gente sabia lidar com fraude quando se sumia com uma urna, quando se sabotava uma votação eletrônica, mas a tecnologia e as redes sociais trouxeram outras modalidades de fraude. Esse é o maior desafio para que tenhamos uma eleição limpa no Brasil.
.
Qual o maior problema da esquerda nestas eleições?
A partir de agora, vamos ter que chegar a um acordo sobre o que fazer com o entulho bolsonarista. Vamos ter que enfrentar um debate entre aqueles que defendem um programa mais minimalista — como eu — e outros que querem algo mais radical, entre aspas, eu diria. A nossa visão dentro da esquerda hoje é majoritária, é uma visão eu diria mais centrista, mais moderada. Há pessoas que vão querer maior radicalismo. Essa modulação entre mudar o que pode ser mudado é o desafio. Em 2003, o Lula recebeu o país de FHC, ou seja, tinha organização. Em 2023, o que vamos receber é um país destroçado institucionalmente, com instituições dizimadas. Áreas inteiras perderam a funcionalidade: educação, ciência, tecnologia e cultura. E há o tal do orçamento secreto. Um governo sério, qualquer que seja ele, tem que desmontar isso imediatamente. Aquilo é roubalheira, é a institucionalização de desvio do dinheiro público. Há interesses majoritários no país que defendem e querem manter essa anomalia. Então o nível de entulho é maior. Exatamente por isso você tem que fazer uma coisa mais focada, eu diria.
O grupo à volta de Lula ainda é praticamente o mesmo há vinte anos. Como pensar numa governança nova cercado das mesmas ideias, conceitos e preconceitos?
Ele tem dito que vai promover renovações. Isso é um desafio no mundo todo. Nos EUA, foram buscar o Biden, um quadro praticamente aposentado, para derrotar o Trump. Quanto tempo a Angela Merkel ficou no governo na Alemanha por falta de opção? Olhe a dificuldade de governança com o Boris Johnson no Reino Unido. No Brasil, a referência de centro progressista moderado ainda é FHC, que tem 90 anos. Não existe ninguém para ocupar esse espaço.
Não é esse o papel do Alckmin como vice do Lula?
Pode ser. Mas isso merece uma reflexão. Quem é o estadista mundial mais ouvido, mais acatado, o estadista não-eleito, a voz que você para para ouvir hoje? É o Papa Francisco. Só tem ele no mundo. Então, veja, isso não é um problema do Lula, do PT.
Por que uma pessoa jovem iria entrar na política hoje?
O jovem não quer, esse é o ponto. No passado, as famílias influentes sempre tiveram representantes no Parlamento. Hoje, você fica mal visto pela sogra (risos). A sogra fala baixo com a vizinha: “Não repara que o marido dela é deputado?” Brincadeiras à parte, a política perdeu status e isso dificulta o ciclo de renovação. Além de uma certa oligarquização da política, é uma atividade muito cara, campanhas com custos exorbitantes. Tudo isso atrapalha a renovação. Isso não isenta os políticos do Brasil de suas próprias responsabilidades. A questão da probidade e da improbidade é fundamental. É isso que temos de trabalhar.
Por falar em improbidade, varrer os Sarney da política maranhense lhe dá uma sensação de dever cumprido?
Eles já não estão nos polos da disputa política, estão divididos, é uma mudança grande. Eu diria que foi positivo, que se abriu espaço para outras opções. Encerrei um ciclo, mas outras pessoas estão surgindo, gente que nem sequer é conhecida nacionalmente.
Como foi governar com Bolsonaro no poder?
Não ter uma relação com o presidente não é bom. Ele foi o mais hostil da história com governadores. Não posso dizer que ele me perseguiu ou me atrapalhou. Claro que a ausência de cooperação é uma forma de prejuízo, mas isso se deu com todos. Na prática, lamento ter passado por tantos contratempos — que começou com a recessão e terminou com a guerra, passando pelo horror que foi e ainda é a pandemia. Do Bolsonaro mesmo, a única coisa de que me lembro é ele me chamando de “aquele gordo do Maranhão”, só isso (risos).