Como surge uma ditadura?
Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência?
Advogado Aírton Paulo
Sempre que uma ditadura cai, a comoção causada invariavelmente leva à certeza de que outra ditadura jamais será permitida, jamais acontecerá. Infelizmente a história nos mostra que poucas vezes as experiências trazidas pelo passado conseguem se traduzir em lições para o presente e o futuro. Ser contrário a ditaduras é um primeiro passo. Mas é insuficiente. Afinal, boas intenções somente não produzem resultados. É preciso conhecer, objetivamente, o que caracteriza um regime ditatorial, tirânico. Ditaduras são o que são por apresentarem características objetivas, claras, definidas, independentemente de opiniões ou juízo de valores.
Houve um tempo em que as ditaduras caminhavam à luz do dia, não tinham a mínima preocupação em se esconder. Algumas décadas e milhões de cadáveres depois, as ditaduras passaram a se apresentar com fantasias, de modo a enganar as pessoas e evitar o surgimento de qualquer resistência.
Para se compreender como surge uma ditadura é necessário, antes de mais nada, entender o que é uma ditadura, um tirania. Ditadura é um regime político em que o poder do Estado é (ou tende a ser) absoluto, ilimitado. É um regime no qual prevalece a arbitrariedade, definida pelo ditador e seu grupo de sustentação. É um regime no qual o tirano pode fazer o que bem entender e não deve satisfação a ninguém. Assim, todos os passos de implantação de uma tirania se balizam, principalmente, pela concentração de poder.
O primeiro passo para o surgimento de uma ditadura é a tomada de poder. Como exposto acima, atualmente as ditaduras não podem mais se revelar à luz do dia. Assim sendo, tomar o poder pela força das armas seria uma estratégia arriscada, e faria surgir imediatamente uma resistência, especialmente num mundo globalizado, em que a informação chega simultaneamente a todos os cantos do planeta. A alternativa viável atualmente é tomar o poder por meio de eleições. Sim, eleições! É claro que nem todos que chegam ao poder através de eleições querem implantar uma ditadura, mas como um golpe armado é inconveniente, a única maneira restante para se chegar ao poder e implantar uma ditadura, é por meio de eleições.
Não foram poucos os ditadores que chegaram ao poder por meio de eleições. O exemplo mais famoso é Adolf Hitler. Mas vários outros estão na lista, como Hugo Chávez, Evo Morales, Saddam Hussein, Hosni Mubarak, etc. E além de levar os tiranos ao poder, as eleições ainda cumprem outro papel: legitimar os ditadores eleitos. Hugo Chávez se valeu muito desse expediente. Apesar de perseguir opositores, aparelhar órgãos de Estado, ampliar os próprios poderes, criar milícias paramilitares, censurar a imprensa, seu governo era legitimado pelo fato de ter sido eleito.
O segundo passo para a implementação de uma ditadura é a manutenção do poder. Ou seja, uma vez conquistado o poder, o tirano precisa tomar medidas para assegurar que o poder nunca mais saia de suas mãos, ou das mãos de seu grupo ou partido. Assim sendo, mesmo que a eleição que o levou ao poder pela primeira vez tenha sido justa, é necessário que as subsequentes sejam devidamente controladas de forma a impedir o sucesso de qualquer eventual oponente. Esse objetivo pode ser alcançado de várias maneiras. A mais simples é fraudando as eleições. Mas também é a mais perigosa, já que se a fraude for descoberta, o tirano pode cair.
Mas também existem maneiras de controlar o resultado das urnas sem fraudar as eleições. Basta definir regras que beneficiem o governo em detrimento de qualquer eventual oposição. Isso foi feito no Brasil, durante o regime militar. Na época, os grupos que apoiavam o regime tinham mais força longe dos grandes centros urbanos. Assim, estabeleceu-se que o mínimo de deputados que cada Estado teria seria 8. Ou seja, nos Estados em que o apoio aos militares era maior, também era proporcionalmente maior o número de cadeiras disputadas. Esse expediente garantiria que, mesmo que não houvesse fraude nas eleições, os apoiadores do governo conseguiriam maioria, tanto no parlamento quanto no colégio eleitoral (na época o voto para presidente era indireto). Essa estratégia é a mesma usada pelos chavistas na Venezuela hoje. Os estados em que os socialistas têm mais influência elegem mais deputados, e isso garante uma permanente maioria à ditadura.
Outra maneira de se perpetuar no poder é ampliando os mandatos dos ditadores. Na maioria dos países existem limites para número de vezes que qualquer governante pode disputar eleições, ou ser reeleito. Acabar com esse limite, permitindo reeleições sucessivas, é outro passo fundamental para a manutenção de poder. Foi assim que Hosni Mubarak e Saddam Hussein conseguiram ficar no poder durante décadas, mas sendo periodicamente reeleitos no Egito e no Iraque respectivamente. Na Venezuela aconteceu a mesma coisa. Chávez legalizou a reeleição ilimitada, e só não se perpetuou no poder indefinidamente porque a natureza tinha outros planos para ele.
Uma vez tendo conquistado o poder e garantido sua manutenção por um longo tempo, é preciso então iniciar uma reforma do Estado de forma a atingir, idealmente (para uma ditadura) a concentração total do poder. Como visto no início, uma ditadura é um regime em que o poder do governante é ilimitado, absoluto, e para tanto, o poder precisa estar todo concentrado nas mãos do ditador. A concentração de poder exige uma série de medidas, mas algumas das mais importantes são as seguintes:
1) Aparelhamento dos órgãos do estado, em especial das forças de segurança. Ao colocar nos cargos chave do Estado funcionários leais à tirania, o ditador passa a ter os meios de usar o aparelho estatal, em especial as polícias, para perseguir adversários. Ele poderá inclusive usar o Estado para criar dossiês falsos para incriminar opositores, e travestir a perseguição política de combate à corrupção. Se bem sucedida essa estratégia traz simultaneamente duas vitórias: a eliminação da oposição, e o ganho de popularidade junto à opinião pública, que tenderá a crer que se trata de uma ação saneadora da política.
2) Controlar a imprensa. Para poder implementar sua agenda sem criar resistências é imprescindível ao tirano controlar as informações (e opiniões) às quais as pessoas podem ter acesso. Por isso o controle da imprensa é fundamental. Afinal uma resistência só poderia surgir no momento em que as pessoas souberem (ou seja, no momento em que as pessoas tiverem acesso às informações sobre) o que está acontecendo.
3) Controle da economia. Numa economia de mercado, os recursos são alocados de acordo com regras de mercado. Entretanto, uma tirania, para se manter, precisa também de meios materiais. Por isso deve controlar a economia , para garantir esses meios. Além disso, o controle direto de empresas e propriedades rurais ajuda a minar o poder de seus donos, que naturalmente se oporiam a qualquer desapropriação. Nesse caso, como no caso da imprensa, vale ressaltar que não é necessário que o Estado seja formalmente o dono de nenhuma empresa ou fazenda. Basta que ele disponha de dispositivos legais para controlar as empresas e fazendas. Assim foi feito, por exemplo, na Alemanha nacional-socialista.
O Estado não era o dono, no papel, das empresas (que continuavam com seus donos originais), mas era quem de fato tomava as decisões dessas empresas, sempre de acordo com os planos do governo (nos países socialistas a economia é planificada). A estratégia nazista foi muito bem sucedida, enquanto durou, porque além de dar ao Estado o controle dos meios materiais, como não realizou nenhuma desapropriação, acabou por não gerar resistência por parte dos empresários.
4) Controlar o judiciário. Indicar pessoas de confiança, leais ao regime ditatorial, para cargos no judiciário, é fundamental para manter o controle do Estado. Como uma ditadura se define pela concentração de poderes, a divisão de poderes não pode existir. Assim, controlar o judiciário é uma medida que ajuda a anular essa divisão de poderes, que passa a se concentrar não mais em instituições públicas, mas na pessoa do ditador ou no seu grupo político. Além disso, ter o judiciário sob controle é fundamental para complementar a estratégia descrita no primeiro ponto: perseguir opositores. Um judiciário independente jamais iria condenar por corrupção pessoas acusadas mediante fraudes e provas falsas. Um judiciário que serve à ditadura em detrimento da justiça não hesitará em fazê-lo.
5) Controlar o legislativo. Também é parte da estratégia de acabar com a divisão de poderes, para concentrá-los na ditadura. Esse ponto vale uma reflexão especial. O legislativo é por excelência o palco da liberdade. É a única instituição política em que a oposição exerce legitimamente seu papel de fiscalizar o governo. A oposição não pode atuar, obviamente, no executivo, que é privilégio do governo por definição. Não pode atuar tampouco no judiciário, que exerce (ou deveria exercer) função técnica, e não política. Resta à oposição, também por definição, o legislativo. Assim, controlar o legislativo significa tirar o único canal institucional legítimo da oposição, e isso é fundamental para implantação de qualquer ditadura.
Controlar o legislativo, entretanto, pode ser feito de várias maneiras. Nas ditaduras que se mostravam à luz do dia, bastava fechar o parlamento usando a força. Mas essa não é a única maneira, nem a mais aconselhável hoje em dia. Pode-se controlar o legislativo manipulando sua composição. Isso pode ser feito, como exposto mais acima, fraudando eleições, ou definindo regras que beneficiem a eleição dos apoiadores da ditadura. Existe ainda uma terceira maneira de controlar o legislativo que não envolve fechá-lo nem manipular sua composição: basta comprá-lo. Nesse caso o ditador precisaria pagar aos membros do congresso (seja em dinheiro ou de outra forma) para garantir apoio ao seu governo e à sua agenda.
Além da aniquilação da oposição, o controle do legislativo é fundamental para que a ditadura aprove as leis que vão emprestar uma fachada de legalidade e legitimidade a suas arbitrariedades. Assim, é necessário que o ditador controle o legislativo para alterar as regras eleitorais, inclusive para permitir reeleições ilimitadas, para desapropriar (se e quando for o caso) empresas e propriedades, criar leis que controlem a imprensa, entre outros. Ou seja, o controle do legislativo é fundamental para uma ditadura porque ao mesmo tempo em que cala a oposição dá ao governo os instrumentos para implementar seu arbítrio na forma de lei, de maneira que tudo seja legal e pareça legítimo.
6) Desarmar a população. Depois que o poder tiver sido alcançado e garantido, depois que a divisão de poderes tiver sido aniquilada e o judiciário e o legislativo estiverem sob controle, depois que a imprensa estiver calada e os meios materiais estiverem nas mãos do Estado, a última esperança de resistência de qualquer pessoa é sua própria arma. Se as pessoas tiverem desarmadas, o Estado possuirá o monopólio da força, e não terá qualquer ameaça em seu caminho.
Concluindo.
Esses passos não se encadeiam cronologicamente. Respeitadas suas características, podem ser feitos em qualquer ordem, a qualquer momento. Muitas vezes são tentados simultaneamente. E sempre virão disfarçados das mais belas e nobres intenções. Ninguém vai chegar para você dizendo que a reeleição tem que ser ilimitada porque quer se perpetuar no poder. Dirão que é para que aquele líder, tão bom, justo e magnânimo, tenha mais um mandato para ajudar o país. Ninguém dirá que o controle da economia servirá para dar ao Estado os meios para implantar uma ditadura, mas sim para melhor redistribuir a renda e acabar com as injustiças sociais. Ninguém dirá que o desarmamento tem como objetivo impedir que as pessoas, em último caso, peguem em armas contra a ditadura, e sim porque o desarmamento ajudará a reduzir a violência e a criminalidade.
O diabo nos engana porque é bonito. Se fosse feio não enganaria ninguém.
E isso tudo é só a parte procedimental para a implantação de uma ditadura. Existe também uma parte cultural, de valores (sim, valores!) que são necessários construir (ou destruir) para se chegar à tirania, mas isso fica para outro
texto.
Via facebook Aírton Paulo
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