Da entrevista concedida por Zé de Abreu ao Faustão, no domingo (24), há um pequeno trecho que resume o que o apresentador — e possivelmente a própria TV Globo — acreditam ser "democracia" ou "liberdade de expressão".
Num comentário, Fausto Silva disse que aquela entrevista, em si, era um exemplo de democracia, com a concessão de 30 minutos, "absurdamente", para que Zé de Abreu expressasse suas opiniões políticas.
Fez a gente lembrar da Globo publicando seus índices de audiência nos jornais, no passado, como se equivalessem a votos — ainda que o público brasileiro não tivesse muitas escolhas, considerando o monopólio global obtido ao longa da ditadura militar.
Sim, a Globo tentava tirar sua legitimidade do Ibope como se fosse uma eleição, como se tivesse havido uma disputa limpa e igual entre as diversas emissoras para chegar à casa do telespectador.
Mais audiência, mais "votos", mais legitimidade, diziam os anúncios da Globo.
É como se o crack "ganhasse eleição" pelo do fato de que vicia e mata mais.
Para nosso bem, agora o Jornal Nacional não seria capaz de apresentar seus 25 pontos de audiência como vitória esmagadora numa "eleição" popular.
Estamos livres dos anúncios, mas não da visão distorcida de democracia.
Assista a participação de Zé de Abreu no Faustão:
Se Faustão — ou a direção da Globo — decidiu conceder 30 minutos a um colega, por que o Jornal Nacional se nega cotidianamente a conceder direito de resposta aos que critica? Por que resume a opinião alheia a notas para cumprir o formalismo de que ouviu o outro lado? Por que não reproduz em seu noticiário o pluralismo da sociedade brasileira, do qual Zé de Abreu, Monica Iozzi e Letícia Sabatella são exemplos? Por que o jornalismo da Globo promoveu uma limpeza ideológica em seus quadros a partir de 2002?
Faustão expressou a visão de democracia da Casa Grande, algo fortuito, arbitrário, ao qual os adversários políticos têm direito desde que obedeçam as regras definidas pelos outros e se limitem ao tempo que lhes foi concedido.
Zé de Abreu foi muito além das explicações sobre as cusparadas que disparou em um restaurante de São Paulo. Teve a oportunidade de chamar Eduardo Cunha de "ladrão", por exemplo.
O ator também mencionou o episódio de sábado (23) à tarde na avenida Paulista, quando houve confronto entre defensores do Pato e defensores da democracia, que organizaram um piquenique diante da TV Gazeta. O jornalista Pio Redondo, quando tentava proteger uma jovem de agressão, teve dois dentes quebrados por um agressor partidário do golpismo.
O fato de que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) está empregando leões-de-chácara armados com paus e barras de ferro é muito preocupante, mas isso a Globo, indignada com cusparadas, pelo jeito ainda não acha digno de registro.
Nosso colaborador Adilson Filho viu a entrevista numa padaria de um dos lugares de maior risco para quem não concorda com a Globo, a Zona Sul do Rio:
Acabei de ver José de Abreu dando a sua versão sobre o ocorrido no restaurante.
Estava na padaria, junto a outras pessoas que também pararam para assistir. É incrível o que está acontecendo no país.
Os brasileiros, de um tempo pra cá, passaram a acompanhar a vida política como se fosse uma novela.
Foi assim que me senti, parado, junto a funcionários, clientes e o dono da padaria, vendo o personagem da semana se manifestar na telinha da TV.
Foi realmente impressionante a entrevista.
Ele falou sobre intolerância crescente, sobre combate à corrupção, sobre a quadrilha do PMDB, sobre a queda da ciclovia no Rio de Janeiro, sobre a quarta citação do vice-presidente Temer por delatores da Lava Jato, sobre a honradez da presidente Dilma… mas foi quando falou sobre a violência que sofreu, dizendo que uma mulher que chama a outra de vagabunda não merece ser chamada de mulher, que arrancou aplausos do auditório e foi fazendo o recinto esvaziar aos poucos.
Eu fiquei pensando sobre a reação dele ao ataque dos fascistas e consigo compreendê-lo totalmente.
Honestamente, não sei como reagiria, na hora, tendo que lidar com dois loucos descontrolados no meio de um jantar com minha família.
Ele cuspiu, poderia ter jogado a mesa no chão ou dado logo uma tapa no meio da venta do sujeito.
É sempre difícil prever uma reação sob forte impacto emocional. Mas acho que alguma lição temos que tirar, e temos de começar a pensar juntos, pois o país que essas pessoas estão moldando com esse golpe irá exigir de nós esse esforço coletivo.
Eu não acredito em diálogo com essa gente. Não existe.
Estamos falando de golpistas, de loucos alucinados que atacam à luz do dia em restaurantes e aeroportos, gente que está longe de ser ‘ingenuazinha’ ou (apenas) iludida pela mídia, como muitos pensam.
É gente que sabe muito bem o que quer, desde que o mundo é mundo. Mas também não acho que a única alternativa seja o enfrentamento físico e verbal.
Isso eu não acho mesmo, e vou lutar até o fim acreditando. Acho que temos de tentar construir juntos um "caminho do meio" para lidar com o fascismo que está aí.
A coisa já não é mais tão imprevisível assim, sabemos que a qualquer momento poderemos ser atacados, xingados, etc.
Nas ruas, creio que a melhor solução seja deixar falando sozinho, se estiver com os filhos dizer que está dando péssimo exemplo pra eles, tentar desconcertar, ou fingir que não está ouvindo mesmo.
Se for o caso, chamar uma autoridade. Em locais privados, como restaurantes, por exemplo, a coisa muda de figura.
Creio que a melhor atitude seja chamar o responsável e exigir a retirada do louco que não está sabendo se comportar civilizadamente.
Não sou eu que tenho que bater boca com um descontrolado desses, o restaurante é responsável por garantir minha integridade.
Fiquei vendo a entrevista até o final, sobraram eu, o gerente da padaria e um cara que esperava o amigo fazer a compra.
Eu percebia o tempo todo esse cara procurando o meu olhar, querendo demonstrar algo.
Fiquei na minha, apenas acompanhando o final da entrevista.
Quando Zé de Abreu falou sobre a ilegitimidade de Temer eu dei um risada como quem diz: é "isso aí mesmo".
O cara estrebuchava, gritou algumas coisas para o amigo, olhava pra mim — e eu continuava fingindo que não o o via, olhos fixos pra cima.
Não é fácil, eu sentia que ele estava mexido, não acreditando que dentro de uma Padaria na Zona Sul da cidade alguém concordava com o que o seu "inimigo" falava.
Senti o quanto ele queria fazer de mim o seu inimigo também.
E se eu reajo, olho pra ele, ele manda uma letra qualquer — tudo podia descambar pra algo muito pior que o cuspe.
Eu já estava ali me preparando espiritualmente pra ser provocado e não reagir.
Como eu não olhei pra cara dele nem por um minuto, fingi que nem existia, talvez ele tenha desistido.
Eu resolvi escrever isso aqui por acreditar que esse pode ser um caminho: nem diálogo, nem porrada. É possível ignorar os fascistas sem baixar a cabeça.
E acho que, daqui pra frente, precisaremos todos aprender a fazer esse exercício coletivo, encontrar cada um o seu meio de não cair em provocação, mas se manter firme e ocupando os espaços com dignidade, para que a nossa sociedade não se transforme de vez naquilo que eles estão fazendo de tudo para transformá-la
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