Ex-ministro Mandetta dá nota 3 para o governo, dez meses depois de pandemia chegar ao país
Em entrevista ao GLOBO dez meses depois do início da epidemia do coronavírus no Brasil, Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde entre janeiro de 2019 e abril de 2020, afirma que, hoje, o país está mergulhado em uma “tripla crise”: “de prevenção, atendimento e vacina”.
ONDE FALHAMOS NO COMBATE AO CORONAVÍRUS? POR QUE VEMOS NOVA ALTA DE CASOS?
Primeiro, porque o presidente não acredita (no vírus). Até hoje não houve uma fala do presidente que ajudasse a Saúde pública brasileira. Ninguém aguenta mais, é legítima a pressão da economia, mas todo mundo deveria andar junto, ou ter uma regra bem clara e transparente para recomendar lockdown tecnicamente e o governo federal apoiar medidas necessárias. Quando a taxa de ocupação hospitalar ultrapassa 90%, tem que frear. A saída da crise depende muito da capacidade de vacinação da população. Até agora não transparece que a gente vá ter a execução de um plano bem fundamentado. Parece tudo errático. É preciso ter uma capacidade de liderança muito forte, e o Brasil está sem liderança em Saúde.
O PRESIDENTE JAIR BOLSONARO ERROU NA CONDUÇÃO DA PANDEMIA? QUAIS OS PRINCIPAIS ERROS DO GOVERNO?
Quando a China noticiou a doença e a OMS (Organização Mundial da Saúde) fez a primeira recomendação de emergência somente para Wuhan, logo no início, apresentei ao presidente essa situação, que era uma doença para a qual tinha que se organizar, o presidente entrou em uma rota de absolutamente negar a existência disso, assim como outros líderes mundiais. Ele falou várias vezes que entre a saúde e a economia, ele ia ficar com a economia. E a população começou a construir as suas linhas de defesa sem contar com a liderança da figura maior do governo. Vimos o Ministério da Saúde falando uma coisa e ele falando outra. Ele começou a criticar todo e qualquer prefeito e governador que fizesse qualquer coisa para diminuir a velocidade de transmissão para não carregar o sistema de saúde, que era o principal problema da doença. Depois ele me troca, coloca um médico. É impossível para um médico com base científica fazer política de governo, firmar uma recomendação, uma prescrição médica. Aí ele põe um militar para oferecer ordem. Faz uma intervenção militar na Saúde, mas um militar não tem a menor noção do que é Saúde. A gente passa a ter um governo federal que sai completamente do enfrentamento da Saúde e com o argumento de que o problema era de logística. Nunca foi, o problema era de Saúde pública, muito mais complexo do que carregar caixa para lá e para cá. E agora tem uma crise tripla, de prevenção, atendimento e vacina.
HOUVE ALGUM ACERTO POR PARTE DO GOVERNO?
O número de mortes fala por si. Ele (Bolsonaro) teve uma condução desastrosa. A desautorização do ministro em público, “manda quem pode e obedece quem tem juízo”; o “e daí?”; “não sou coveiro”; “gripezinha”; “está no final”. Está no final nada. Se teve alguma coisa digna de nota eu não saberia te citar. Nós conseguimos ativar a indústria brasileira de respiradores, foi uma coisa que conseguimos fazer quando eu estava lá, conseguimos abrir 15 mil leitos de UTI, que é uma coisa positiva. Agora, eles deixaram 7 milhões de kits no almoxarifado. O governo federal deixou as pessoas à própria sorte. Não vi nem sequer se solidarizar com quem perdeu um membro da família. É quase como se tivessem raiva das pessoas que morreram. Quem morreu é culpado.
DE ZERO A DEZ, ENTRE ERROS E ACERTOS, QUAL NOTA O GOVERNO FEDERAL MERECE PELA CONDUÇÃO DA PANDEMIA?
Eu vou dar três, está de recuperação.
A RECOMENDAÇÃO DE SUA GESTÃO ERA SÓ BUSCAR AJUDA MÉDICA COM SINTOMAS MAIS FORTES, O QUE HOJE É CRITICADO PELA ATUAL GESTÃO. FOI UM ERRO DAR ESSA ORIENTAÇÃO?
Todas as orientações eram no sentido de entrar em contato, fizemos via telemedicina com o número 136. Não tínhamos máscaras, não tínhamos capote, não tínhamos recursos. Quando deixei o ministério estávamos com cerca de mil óbitos. Eles implementaram essa política deles e estamos com 190 mil mortos, não vejo que isso tenha sido um elemento. Os números falam por si, se isso tivesse tido algum impacto na alteração da curva de mortes, há quanto tempo essa política está instalada? Quem acredita ainda hoje em cloroquina no tratamento precoce? Ninguém.
DO QUE SE ARREPENDE NO CARGO OU FARIA DIFERENTE?
Gostaria muito de ter tido melhor percepção, porque quando a China apresentou a doença, eles apresentaram como um vírus pesado, que se você identificasse a pessoa e bloqueasse os contatos dela, ele parava (de disseminar). A gente se preparou com essas informações para um vírus lento. Somente quando ele entrou na Itália, que fez aquele estrago no sistema italiano, e foi fazendo estrago na Inglaterra, na Espanha e se mostrou extremamente capaz de transmitir, é que vimos que estávamos diante de um vírus extremamente competente. Se eu soubesse que era um vírus tão competente em termos de transmissão, teria feito um sobredimensionamento de vigilância e testagem. A gente começou imaginando que precisaria de 2 mil leitos de CTI a mais, recalculamos e vimos que precisaríamos de 15 mil a mais. Somente quando a doença chegou na sociedade ocidental (vimos a dimensão). Com a doença no mundo ocidental, com a imprensa livre, com as academias livres, ciência livre, os governos democráticos tiveram que impor a realidade. Diante do que pôde ser feito naquele período com os elementos que a gente tinha, eu não faria nada diferente.
SE VOLTASSE AO CARGO HOJE, QUAL SERIA SUA PRIMEIRA MEDIDA?
Eu aumentaria muito a credibilidade da vacina, faria eventos, chamaria todo o setor, cientistas, personalidades, conversaria francamente com a sociedade brasileira sobre os riscos e os benefícios. Partiria agressivamente para fazer um pool de vacinas e organizaria para que a gente pudesse ter um número maior possível de pessoas vacinadas antes do próximo inverno. Esse é um vírus que tem sazonalidade, o período que ele tem mais facilidade é o inverno. Ele vai aumentar diametralmente no próximo inverno, então temos que chegar lá, pelo menos, com todos os idosos, pessoal de saúde e pessoas com comorbidades vacinados. Teria feito acordo com todos os produtores de vacina, não teria colocado jamais a ficha em uma única vacina. A aquisição de vacinas está sendo feita a partir da pressão da sociedade, estão sendo obrigados a admitir coisas óbvias. (O Globo)