quinta-feira, 1 de maio de 2014

Ayrton Senna colocou a Fórmula 1 a seus pés. Mas se tornou a maior vítima de uma era que acabou há duas décadas

Os 10 anos que criaram um mito





Sergio Quintanilha
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Para quem nasceu de 1990 para cá, talvez seja difícil imaginar o tamanho da idolatria que muitos brasileiros sentiam por Ayrton Senna. Afinal, uma coisa é ver reportagens sobre sua carreira ou mesmo assistir a vídeos completos das corridas; outra, bem diferente, é ter acompanhado sua trajetória ao vivo. Por isso, muitos jovens brasileiros nem sabem quem foi Ayrton Senna, por mais que isso pareça uma blasfêmia para seus fãs dos anos 80 e 90 -- especialmente para aqueles que viram Michael Schumacher ganhar sete campeonatos da Fórmula 1 ou para quem acompanhou, ao vivo, os quatro títulos que Sebastian Vettel levantou nas últimas quatro temporadas. Perto das glórias desses dois super pilotos alemães, os três mundiais de Ayrton Senna podem parecer pouco. Para esses jovens, portanto, é preciso deixar uma coisa clara: Ayrton era diferente.

Quando ele despontou como revelação do automobilismo inglês, ganhando tudo na Fórmula Ford e na Fórmula 3, não havia um vácuo de heróis brasileiros na Fórmula 1. O País havia se acostumado com as glórias de Emerson Fittipaldi, entre 1970 e 1975, e já em 1980 Nelson Piquet passou a frequentar o topo dos pódios. Campeão em 1981 e 1983, Nelson supriu esse vazio. Mas ele não era o bom menino que a mídia buscava desesperadamente. Por isso, Ayrton caiu como uma luva nas necessidades dos brasileiros – e foi este um dos grandes motivos de sua idolatria.

Antes de estrear na Fórmula 1, no GP do Brasil de 1984, Ayrton fez dois testes na categoria, como prêmio por sua atuação na F3 britânica: um na Williams e outro na McLaren. Foi bem. Mas, como era um novato, nem Frank Williams nem Ron Dennis se animaram a dar-lhe um carro para guiar. Por isso, ele foi correr na Toleman. Assim como Emerson, em 1970, Ayrton precisou de poucas corridas para assombrar o mundo -- no GP de Mônaco de 1984, debaixo de um aguaceiro, levou seu Toleman Hart a um incrível segundo lugar – que seria primeiro, se a prova não tivesse sido interrompida exatamente na volta em que ultrapassou Alain Prost, da McLaren. Em 1985, já na Lotus Renault, Senna trouxe para a televisão a saudosa pintura preta e dourada dos cigarros JPS (John Player Special) dos tempos de Emerson. Com ela, ganhou sua primeira corrida, debaixo de intensa chuva no GP de Portugal. Com mais uma vitória na França e outros quatro pódios, terminou em quarto lugar no campeonato, à frente de Piquet.

Começou uma enorme rivalidade entre os dois brasileiros. Em 1986, Piquet foi para a Williams e Senna continuou na Lotus, mas com um carro amarelo patrocinado pelos cigarros Camel. Nelson ganhou quatro corridas e chegou à última prova disputando o título, mas terminou em terceiro. Ayrton ficou em quarto, com uma vitória na Espanha e outra nos Estados Unidos. Foi nessa corrida de Detroit que o bordão “Ayrton Senna do Brasil”, gritado por Galvão Bueno nas transmissões das corridas, realmente ganhou força. Na véspera da corrida, o Brasil havia sido desclassificado na Copa do Mundo pela França, num jogo em que os ídolos Zico e Sócrates perderam pênaltis. Como a Renault fornecia motores para a Lotus, Ayrton foi dormir sob a chacota dos franceses da equipe. No dia seguinte, quando venceu o Grande Prêmio, chegando à frente dos franceses Jacques Laffite e Alain Prost, Ayrton pegou uma bandeira do Brasil na volta de desaceleração e, pela primeira vez, protagonizou a cena que emocionaria milhões de brasileiros.

Em 1987, Piquet foi tricampeão e a torcida ficou dividida entre “sennistas” e “piquetistas”. Senna ganhou só dois GPs, mas um deles foi em Mônaco – o primeiro dos seis que lhe dariam o apelido de “Rei de Mônaco”. Oito anos depois daquele obscuro teste com a McLaren, Ron Dennis finalmente deu um lugar para Ayrton Senna em sua equipe, para correr ao lado de Prost, já bicampeão. Se tudo fosse normal, era para Senna ser o segundo piloto. Mas Ayrton não era normal.

E muito menos seria segundo piloto de quem quer que fosse. Bastaram duas corridas para começar na McLaren um dos maiores duelos esportivos de todos os tempos: Senna versus Prost. O francês, que era chamado de “Professor”, terminou a quarta corrida com três vitórias e um segundo lugar. Mas, a partir do GP do Canadá, Ayrton impôs uma série de seis vitórias em sete corridas e emparelhou a disputa.

Na televisão, Ayrton Senna cultivava cada vez mais o papel de “moço bom”, aquele cara que todas as mulheres queriam como marido de suas filhas. Mas seu namoro com a apresentadora Xuxa foi visto por muitos como uma genial jogada de marketing: os dois queridinhos do Brasil juntos. Na pista, Senna não tinha nada do bom mocinho da Globo. Era maquiavélico se tivesse de forçar uma ultrapassagem ou fechar a porta para o adversário.

O fato de Piquet e Prost terem três títulos cada um atormentava Senna, que já contava 28 anos e nunca tinha sido campeão mundial. No decisivo GP do Japão, Ayrton sabia que não poderia desperdiçar aquela oportunidade. Mas, na largada, seu carro ficou parado e só se moveu quando quase todos já o haviam ultrapassado. Contando com sua “arma secreta”, a chuva, Ayrton ultrapassou todos os concorrentes, inclusive Prost, e ganhou a corrida. Enfim, era campeão da Fórmula 1.

Suas três conquistas foram em Suzuka, e também sua maior derrota. Ver as decisões pela televisão, na madrugada de sábado para domingo, tornara-se um programa festivo para milhões de brasileiros. Em 1989, Ayrton e Alain nem se falavam. Era guerra declarada. No final, mesmo com seis vitórias, contra quatro do rival, perdeu o título em Suzuka, numa corrida espetacular. Prost foi perseguido por Senna durante 46 voltas sem cometer um único erro. Quando Senna deu o bote, forçando uma ultrapassagem, Prost não aliviou – manteve malandramente sua trajetória e os dois bateram. O francês desceu do carro, crente que era campeão. Ayrton, não. Pediu para ser empurrado pelos fiscais, voltou à corrida, descontou uma enorme diferença para Alessandro Nannini e terminou em primeiro lugar. Uma vitória na raça! Mas foi desclassificado por ter “cortado caminho”. Um erro bobo, que qualquer piloto de kart evita cometer. Na prática não representou uma vantagem – mesmo assim, a FIA foi implacável.

Ayrton, o herói nacional, passou a ser também a vítima nacional. E os franceses Prost e Jean-Marie Balestre (presidente da FIA) tornaram-se inimigos públicos número 1. A desilusão foi tanta que Senna fez até um teste no carro de Emerson Fittipaldi na Indy. Só que havia mais reservado para Suzuka, um ano depois. Novamente disputando o título com Prost, que se transferiu para a Ferrari, Ayrton reclamou que a posição do pole position (ele, como sempre) tinha menos aderência do que a linha de fora, onde Prost largaria. Ayrton foi dormir com uma certeza: a única chance de ganhar aquela corrida seria largar na frente. Mas o “Professor” arrancou forte e o brasileiro não teve dúvidas: bateu na traseira da Ferrari acelerando, de propósito, como vingança pelo malandro acidente de 1989. Os dois carros ficaram danificados. Mas dessa vez Senna era o campeão. Bicampeão! O terceiro título, em 1991, veio de forma mais tranquila. Com seis vitórias, Senna só encontrou resistência a partir da metade da temporada, quando Nigel Mansell mostrava que a Williams Renault era a nova equipe a ser batida.

Mesmo assim, Ayrton correu mais dois anos na McLaren e teve de engolir o tetracampeonato de Prost. Aliás, como o Brasil fracassara na Copa do Mundo de 1990, o tetra (no futebol e na Fórmula 1) virou uma paranoia nacional. Com a aposentadoria de Prost, Ayrton conseguiu a sonhada vaga na Williams. Só não contava com outra força emergente: Michael Schumacher, da Benetton. Ayrton fez a pole nos dois primeiros GPs, mas não terminou nenhum deles e viu Schumacher abrir 20 pontos na tabela.

Na terceira corrida, em Ímola, Ayrton fez sua 65ª pole, com Michael ali, a seu lado. A história oficial diz que o brasileiro pediu à equipe para serrar a barra de direção de seu carro, a fim de obter alguma vantagem. Quando escapou da pista, a 240 km/h, em direção ao final dramático na curva Tamburello, Senna estava em primeiro lugar. Sua morte trágica, acompanhada ao vivo por milhões de fãs, deixou o Brasil em estado de choque -- uma tristeza que até hoje provoca um nó na garganta de quem relembra o acidente. E o pior é que ele nem tinha motivos para se preocupar tanto. Schumacher chegou apenas um ponto na frente do companheiro de Senna na Williams, o pacato Damon Hill. E mais: para ganhar o primeiro título, Schumacher teve de jogar seu carro para cima de Hill, exatamente como Prost e Ayrton fariam. Começava um novo capítulo na história da F1: a era Schumacher. Aquela em que os boxes decidiriam o ritmo das corridas e até mesmo quem chegaria em primeiro lugar. Ayrton Senna não caberia nesta Fórmula 1.

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